
“No templo dos meus familiares”, “Ninguém segura essa mulher”, “Vivendo pela palavra” e “Rompendo o silêncio” são alguns dos romances de Alice Walker traduzidos no Brasil. O mais conhecido é “A cor púrpura”, de 1983, adaptado aos cinemas por Steven Spielberg, com Whoopi Goldberg e Oprah Winfrey no elenco. Vencedora do National Book Award e do Prêmio Pulitzer de Ficção, Walker nasceu em 1944 e é considerada uma das maiores escritoras do século 20. Um livro de não-ficção fundamental para entender o pensamento da autora, “Em busca dos jardins de nossas mães”, chega ao Brasil 41 anos depois da primeira edição, de 1980. A tradução é da poeta Stephanie Borges para a editora Bazar do Tempo.
O desejo de mergulhar no pensamento e nos processos criativos de autoras negras levou Stephanie até a escritora estadunidense. “Descobri que tinha pouca coisa de Alice Walker publicada no Brasil e comecei a ir atrás dos ensaios dela sobre escrita. Foi mais ou menos na época que estava pesquisando para escrever o meu livro”, diz Stephanie, autora do livro de poemas “Talvez precisemos de um nome para isso” (Cepe Editora).
Além de Walker, autoras feministas como Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks e Patrícia Hill Collins ganharam recentemente edições brasileiras, refletindo o interesse crescente de leitores e leitoras do país. O movimento de busca por referências negras também foi o que guiou Alice Walker, como ela demonstra nos ensaios, artigos e conferências, produzidos entre 1966 e 1982, e reunidos no livro “Em busca dos jardins de nossas mães”. De forma muito generosa, a escritora revela suas influências e origens. “Descobri que, de fato, a maioria das mulheres negras que tentou se expressar e ganhar a vida através da escrita morreu na obscuridade e na pobreza, quase sempre antes da hora”, conta no livro. No posfácio, a jornalista e pesquisadora Rosane Borges destaca: “Alice Walker nos faz, a um só tempo, testemunhas e peregrinas de uma busca incessante que percorre materiais simbólicos à procura daquelas e daqueles soterrados provisoriamente pela empresa colonial interracista.”
Ao se apresentar como ‘mulherista’, Alice recusa a identificação com o termo “feminista negra” por entender que há questões e reivindicações muito próprias das mulheres negras que não encontram ressonância no feminismo. O lugar de artista, por exemplo, ou de produzir bens simbólicos é muito diferente para uma mulher negra e uma mulher branca. Ela contrapõe o ensaio de Virginia Woolf no ensaio “Um quarto só seu”, que defende a necessidade de a mulher ter um quarto exclusivo para escrever, se possível trancado com chave e fechadura, além de recurso financeiro para se manter. Alice Walker pontua que a situação descrita por Virginia Woolf não se aplica à realidade da maioria das mulheres negras. E, mesmo sem as condições necessárias, estas mulheres não deixam de produzir arte.
Entenda o mulherismo
“Mulherismo” e “mulherista” são a tradução do inglês dos termos womanism e womanist, neologismos usados por Alice Walker na edição original de “Em busca do jardins de nossas mães”, publicado nos EUA em 1983. Representam um movimento de tomada de posição devido à não-identificação de mulheres negras com o feminismo. Intelectuais negras questionam o fato de o feminismo não se atentar para os recortes raciais. Em nota, a tradutora Stephanie Borges lembra que o termo mulherismo foi também empregado por Patricia Hill Collins para analisar as diferenças e semelhanças entre feminismo negro e mulherismo no ensaio “What’s in a Name? Womanism, Black Feminism, and Beyond (O que há em um nome? Mulherismo, Feminismo negro, e além, numa tradução nossa). Na apresentação do livro, Alice Walker apresenta três definições do termo: ‘- “de mulheril (em oposição a “meninice” como algo frívolo, irresponsável, sem seriedade). Uma feminista negra ou uma feminista de cor. Da expressão popular que as mães negras usam para falar com suas filhas “você está agindo como o mulherio”, ou seja, como uma mulher”. A outra definição de Walker: 2 – “Uma mulher que ama outras mulheres, sexualmente e/ou não sexualmente. Aprecia e prefere a cultura das mulheres, sua flexibilidade emocional (valoriza as lágrimas como contrapeso natural à risada) e sua força. Às vezes, ama indivíduos homens, sexualmente e/ou não sexualmente.” Por fim: 3 - “Ama a música. Ama a dança. Ama a Lua.”

“Em busca dos jardins de nossas mães”
.Alice Walker
.Coleção Prosa mulherista
.Tradução de Stephanie Borges
.Posfácio de Rosane Borges
.376 páginas
.R$ 69,90
Entrevista/Stephanie Borges (poeta e tradutora)

“Mistura de antologia feminista com o amor à literatura”
Como pode ser apresentado este livro de Alice Walker?
Esse livro mistura vários textos de não-ficção que Alice Walker produziu ao longo de 20 anos. Vai desde a crítica literária até perfis que ela escreveu para revistas, discursos de formatura de universidade e outros de mais fôlego. O próprio “Em busca dos jardins”, um ensaio muito famoso dela, já tinha saído em algumas coletâneas de feminismo. Também estão os textos que ela faz para a recuperação da obra da (antropóloga) Zora Neale Hurston (1891-1960). Ela foi a responsável pela retomada da obra da Zora, que ficou muito tempo sem ser publicada nos Estados Unidos (“Aos olhos de Deus”, romance publicado em 1937, será editado em setembro no Brasil pela Record). Tenho a sensação de que “Em busca dos jardins de nossas mães”, na verdade, é uma mistura de antologia de pensamento feminista com uma grande declaração de amor à literatura.
Quais as referências literárias da escritora?
Ela fala muito de ter estuado uma bibliografia muito branca, de ter tido professores e autores brancos, muito importantes, mas que, em dado momento, ela percebeu que deveria procurar referência negras. Ela fala do (William)Faulkner, da Flannery O’Connor, reconhece a qualidade literária deles. Mas ela também diz: ‘Você não pode só ler os brancos e só ler os negros. E você pode ler o Faulkner e reconhecer que em alguns momentos, ele é, sim, racista’: um homem branco formado em uma sociedade racista. O autor tem essas qualidades, você aprende com ele e depois vai ler outras coisas. Ela fala do Jean Toomer (1894-1967), um caso complicadíssimo: negro de pele clara, depois renega as raízes dele e finge que é uma pessoa branca. Ela evita a ideia de simplismo e de purismo para mostrar que nossa vida é cheia de misturas e contradições e assim também é o nosso caminho na literatura.
E a perspectiva feminista de Alice Walker?
Esse livro foi escrito depois de várias questões do feminismo negro. Nos anos 1960, boa parte das mulheres negras feministas estava inserida no movimento dos direitos civis. Primeiro, estavam lutando para o fim da segregação racial. Quando saiu a assinatura da lei, em 1968, depois da morte de Martin Luther King, elas quiseram dar mais atenção à causa feminina, embora já tivessem envolvimento. Elas começam a observar como o debate no movimento hegemônico estava muito enviesado. Nessa época, nos Estados Unidos, estava se debatendo muito a questão do aborto e do divórcio, enquanto as mulheres negras estavam interessadas na igualdade salarial: nunca pararam de trabalhar e a remuneração delas era pior, além do fato de que precisavam de creches para deixar os filhos. Então, como não chegaram a um consenso, as feministas negras começaram a produzir teoria: Audre Lorde, Patrícia Hill Collins, Angela Davis... Alice Walker veio um pouco depois.
Por que Alice Walker usa o termo ‘mulherista’ para se referir a esse movimento das mulheres negras?
Durante os anos 1970, várias mulheres negras estavam lutando para a igualdade das mulheres, mas elas não se identificavam como feministas. Elas achavam que o feminismo era movimento hegemônico branco, que não atendia às demandas delas. Então, elas não queriam usar o termo feministas negras. Elas começaram a se chamar de mulheristas. Dentro desse movimento, tem ensaios muito bons, mas um em especial da revista “Conditions”: “Se o presente se parece com o passado, como será que o futuro se parece?”, que fala que não adianta as mulheres negras combaterem o racismo se elas não combaterem a lesbofobia. Tem que defender as lésbicas. Ela começa a questionar uma série de coisas. Elas questionavam inclusive a violência doméstica dentro das comunidades negras, à época um grande tabu. A Walker, inclusive, quando lançou “A cor púrpura”, foi questionada por ter escrito uma história que acusava os homens negros de estupro e violência. Mas isso acontece e não vai parar de acontecer enquanto a gente não reconhecer e discutir sobre isso. Ela tem posicionamentos muito claros do que ela é contra.
E sobre o termo “mulherismo”?
Não consigo precisar quem cunhou o termo “mulherismo”, mas Alice Walker foi uma das primeiras pessoas a colocar em livro a ideia do mulherismo como o feminismo que está interessado nas questões raciais, não é LGBTGFóbico. E ela faz questão de colocar na definição ‘alguém que ama homens e mulheres’, não necessariamente sexualmente. A ideia toda é deixar clara a questão de que há uma igualdade, não apenas trocar a opressão.
Alice Walker relaciona o termo mulherista com a literatura?
Quando ela fala de literatura ela está muito interessada em mulheres que contam suas histórias a partir da própria perspectiva, não de reproduzir a ideia do patriarcado de como tem que ser uma mulher. Um exemplo: quando ela fala da Zora Neale Hurston, está falando de uma mulher que queria escrever as histórias sobre a comunidade negra onde ela nasceu e cresceu. São histórias atravessadas por uma série de questões: machismo, violência na família, violência dentro do casamento. Mas essas mulheres, ao contar a história, têm que ter autonomia intelectual. A questão não é usar a ficção e a poesia para um veículo de ideias. A pessoa não lê “A cor púrpura” para se tornar uma feminista. Quem lê sabe que foi escrita por uma feminista, pela maneira como aquelas personagens vão passando por uma série de situações e vão aprendendo a se posicionar para se defender, vão construindo alianças entre si. Mas, em vez de as mulheres ficarem brigando entre si por causa de homens, em “A cor púrpura” elas vão construir uma vida melhor para elas. Isso diz muito mais sobre a maneira como ela constrói as histórias do que ficar tentando colocar ideias dentro da ficção.
Como surge no livro a referência à África?
Tem um ensaio em que ela fala de uma época da vida em que pensou em se mudar para a África, mas acabou não indo. Ela visitou a África, se encantou, mas percebeu que ir embora não iria resolver os problemas dela nos Estados Unidos: precisava cuidar do lugar de onde ela veio, voltar a morar no Sul dos EUA (a escritora nasceu no estado da Geórgia).
O que foi mais desafiador na tradução da obra?
O mais desafiador é que os textos estão cheios de citações, de referências que a gente não tem aqui. Walker tem um ritmo no ensaio que parece muito como se ela estivesse contando uma história. É uma escrita muito saborosa de ler, mas difícil de imitar. No meio dessa escrita, ela fica indo e voltando em estilos e linguagens que são muito diferentes. Ela começa a contar, por exemplo, sobre as pessoas que faziam testes para se certificar que a segregação racial havia, de fato, caído como determinava a lei. Aqui, no Brasil, a gente não faz a menor ideia da existência dessas pessoas que faziam testes para ver se a lei estava sendo cumpria: chegavam em um hotel caro, pediam para almoçar e conferiam se as pessoas iriam atendê-los ou se seriam mandados embora. São coisas que estão presentes na cultura dos EUA e escapam das nossas referências. A gente precisa pesquisar e entender o que está fazendo, incluir notas de tradução para ficar mais claro para o leitor.