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Estado de Minas ENTREVISTA

Luís Cláudio Villafañe: 'O machismo teve papel preponderante'

'Euclides (da Cunha) não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço'


02/07/2021 04:00 - atualizado 02/07/2021 09:01

(foto: ARQUIVO PESSOAL)
(foto: ARQUIVO PESSOAL)
Ao mesmo tempo em que desmistifica a figura histórica de Euclides da Cunha, ao mostrar seus equívocos pessoais e profissionais, o historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos ressalta a importância de enxergar o escritor em seu contexto histórico logo no início da Primeira República. Pós-graduado em ciência política pela New York University, mestre e doutor em história pela Universidade de Brasília e embaixador do Brasil na Nicarágua desde 2017, Villafañe fala nesta entrevista ao Pensar do absurdo do massacre de sertanejos na Bahia.

E também da contundente reação de Euclides diante da paixão extraconjugal de sua mulher, Ana, da qual não quis se separar, mesmo diante de todas as evidências de que o casamento já tinha acabado havia anos. “No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de 'lavar a honra com sangue'”, diz o autor, que também escreveu “Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco”, biografia de um dos homens públicos mais influentes do Brasil na virada dos séculos 19 e 20.

 

"Em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como 'atalho' ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada"

 

Seu livro desconstrói a figura histórica de Euclides da Cunha ao mostrar sua face de racismo, misoginia, plágio, defensor de intervenção militar e falso pioneirismo na denúncia do massacre em Belo Monte (Canudos). O que sobra, então, o escritor e o líder da expedição na Amazônia? Ou a vida e a obra de Euclides devem ser consideradas dentro daquele contexto histórico anacrônico?

Todos nós vivemos dentro dos limites impostos pelo tempo e pela sociedade em que nos tocou viver. Naturalmente, contudo, esses limites sempre serão elásticos o suficiente para que haja escolhas individuais e contradições. Em sua vida pessoal, Euclides não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço (de branco e índio) e manteve profícuas relações de afeto e admiração intelectual com negros como Teodoro Sampaio e Vicente de Souza, por exemplo. De forma contraditória, em “Os sertões” e outros textos promoveu teses, inclusive em muitos aspectos já ultrapassadas, de um racismo supostamente científico.

Em outros aspectos, ele não se diferenciou do pior que havia em seu tempo, como a misoginia, e acabou morrendo em uma suposta tentativa de “defender sua honra” ao tentar matar, à traição, o namorado da esposa, Dilermando, e provavelmente a própria Ana, sua mulher. A relação entre Ana e Dilermando datava já de alguns anos, com o conhecimento de Euclides, e a tentativa de assassinar os dois se deu apenas quando ficou claro que o escândalo seria inevitável, pois ela o estava deixando definitivamente. Pode-se arguir que foi a reação que se esperaria dele naquela época. Não é assim. Para ficar em um exemplo próximo, Antônio Conselheiro foi traído e abandonado pela mulher, no interior do Ceará e não na capital do país, e não tentou assassinar ninguém.

Ou seja, o contexto histórico – que eu examino com vagar na biografia – é indispensável para situar os personagens, mas, em si, não explica seus atos, opções ou crenças. Além do mais, os biografados são pessoas reais, sempre uma soma de qualidades e defeitos. Euclides é um personagem extremamente rico e, como todos nós, muitas vezes contraditório. Foi autor de uma obra literária e jornalística excepcional e viveu uma vida interessantíssima, com grandes acertos e vitórias e também erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, é abrir uma grande janela para o Brasil do fim do século 19 e o início do seguinte.

 

“Os sertões” deve ser visto essencialmente como uma obra literária, diante dos inúmeros equívocos científicos, históricos e biográficos (como a falsa figura messiânica de Antônio Conselheiro construída por Euclides)? Apesar desses problemas, você a considera uma obra-prima.

Quando de seu lançamento, em 1902, um dos grandes atrativos da obra foi o que o próprio Eu- clides chamou de “consórcio da ciência e da arte”. Ou seja, além de obra de literatura, o livro serviria de referência nos diversos campos científicos que abarcava. Logo em seguida, contudo, muito da ciência de “Os sertões” começou a ser posta em questão e hoje as explicações científicas oferecidas pelo livro são irremediavelmente datadas e assim devem ser lidas, como seria o caso para praticamente todos os textos científicos de mais de um século.

A sociedade brasileira do início do século 20 era essencialmente racista, recém-saída de séculos de escravização justificada por supostas diferenças raciais. Nesse ponto, Euclides utilizou alguns argumentos e teses que já eram considerados superados, mesmo em 1902. Do mesmo modo, as interpretações dele em distintas áreas, como geologia, geografia, botânica, antropologia, sociologia e história foram sendo superadas, algumas rapidamente. Outras, como a interpretação histórica sobre a formação e o funcionamento de Belo Monte e a figura de Antônio Conselheiro, resistiram por muitas décadas, mas hoje também estão superadas.

Isso, aliás, é natural. As verdades científicas são sempre provisórias. E, de todo modo, Euclides tem o mérito de ter influenciado diversas áreas do conhecimento por períodos de tempo bastante longos em alguns casos. A força literária e as qualidades estéticas do texto, por sua vez, permaneceram, ainda que – como qualquer texto clássico – sejam relidas e reinterpretadas a cada geração de leitores. Em todo caso, “Os sertões” segue e, creio, seguirá no futuro previsível, sendo um texto indispensável e Euclides um autor incontornável na literatura em língua portuguesa.

 

“Os sertões” é realmente um “livro vingador”, segundo o escritor Euclides da Cunha, que redime a falsa impressão do repórter Euclides da Cunha sobre Belo Monte? Afinal, ele acusa um “crime sem criminosos”, porque não aponta culpados.

A questão do “crime sem criminosos” é mais profunda do que apenas a omissão em apontar os criminosos. A ideia do massacre dos sertanejos e da destruição de Belo Monte como um crime já estava bem consolidada quando Euclides publicou “Os sertões”, cinco anos após o fim da campanha militar. Ele em nada inovou nessa denúncia. De certo modo, ao contrário, a obra contribuiu para a superação do mal-estar que prevalecia na sociedade brasileira depois da constatação de que fora uma mortandade injustificada e de que a ideia de que Belo Monte pudesse ameaçar a República tinha sido um delírio absurdo.

Em “Os Sertões”, com todo o seu enorme talento literário, Euclides conduz leitores e leitoras a ver a destruição de Belo Monte como uma catástrofe inevitável. Com base em um discurso determinista em um tom fortemente cientificista – e assim em tese “neutro” –, ele argumenta que aquelas pessoas estavam isoladas não somente no espaço, mas de certo modo também no tempo, pois estavam atrasadas para o inevitável encontro com a civilização, que levaria ao fim das “sub-raças sertanejas do Brasil”. O processo aconteceria naturalmente, mas Belo Monte apareceu como uma aberração no meio desse caminho, com os sertanejos galvanizados pela “loucura” de Antônio Conselheiro.

Assim, se houve um culpado, este seria Conselheiro, mas, na verdade, nem isso, pois ele fora vítima da própria loucura. Ainda que o objetivo final fosse incorporar as populações dos sertões na modernidade e não matar os sertanejos, as condições específicas de Belo Monte teriam levado àquela situação extrema: “Sob a pressão de dificuldades exigindo soluções imediatas e seguras, não havia lugar para essas visões longínquas do futuro”, afirmou Euclides no livro. Muito mais do que não apontar culpados, o raciocínio leva à conclusão de que a matança ocorrera por circunstâncias fora do controle dos perpetradores – pessoas concretas: propagadores do ódio, mandantes e executores.

O capítulo de conclusão do livro, de famosas duas linhas, arremata essa ideia: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”. Henry Maudsley trabalhava o conceito da irresponsabilidade penal dos doentes mentais. A destruição de Belo Monte e o assassinato de 20 mil sertanejos foram um ato de loucura, portanto inimputável, realizado por uma entidade abstrata – a República – e não por aquelas pessoas concretas, que continuaram suas carreiras políticas e militares, absolvidas inclusive do remorso, pois fora, segundo essa leitura, uma catástrofe inevitável.

Por que a tese defendida por Euclides da Cunha de que a democracia republicana em crise precisa passar por intervenção militar autoritária sempre se sustenta, como vemos nas ruas do Brasil de hoje, mesmo com todos os exemplos de fracasso e atrocidades?

Ainda que em certo momento tenha sido fortemente influenciado pelo positivismo e depois chegado a ser um florianista convicto, Euclides não chegou a falar claramente da necessidade de uma ditadura militar para instalar ou regenerar a República. Ele defendeu, sim, em especial no período em que esteve na ativa no Exército, a necessidade de um governo forte, autoritário e austero para superar as ameaças que ele enxergava contra a República.

Ainda que geralmente legalista, ele chegou a participar da conspiração contra Deodoro, que acabou por renunciar em favor de Floriano Peixoto, cujo governo despótico ele apoiou com entusiasmo. Seu florianismo murcharia depois da prisão do sogro pelo marechal-presidente e o positivismo da juventude também seria superado. O entusiasmo por soluções de força persistiria um pouco mais. Ele aplaudiu a ação do Exército contra Belo Monte, já durante o governo Prudente de Morais. As críticas à condução da campanha e o massacre dos sertanejos só apareceriam anos depois.

Infelizmente, em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como “atalho” ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada e atualizada em novas bases, mas sempre será uma mistificação de bases extremamente frágeis pela própria contradição contida nos termos dessa formulação. Relembrar o derramamento de sangue inútil e absurdo ocorrido no sertão da Bahia serve de alerta contra essas mistificações criminosas.

A polarização política (republicanos x monarquistas) na primeira década da República gerou histeria coletiva e teve como uma das graves consequências o massacre em Belo Monte (Canudos), considerado erroneamente foco de resistência monarquista. E ainda a ameaça do presidente Floriano Peixoto de prender magistrados do STF. Essa é uma herança autoritária que ainda reverbera no Brasil que se aproxima de outra polarização em 2022?

O autoritarismo e a criação de mistificações são duas questões diferentes, mas que se entrelaçam e se alimentam uma da outra. As raízes do pensamento autoritário no Brasil vêm de longe; afinal, a própria monarquia, em que pese a fachada tolerante e civilista, se apoiava na escravidão e em uma sociedade extremamente hierarquizada, para não se buscar essas raízes na colonização portuguesa. Os anos iniciais da República são extremamente conturbados, com guerras civis como a Revolução Federalista e massacres da população pobre, como foi o caso de Belo Monte.

Foram também os anos em que os militares ressurgiram no primeiro plano da política brasileira, legitimados por uma ideia de missão modernizadora, patriótica e salvacionista. No início da República, o fantasma de uma restauração monarquista (cujas bases reais eram sumamente frágeis) foi usado como desculpa para dar legitimidade aos setores militares e civis mais radicais e mais autoritários. Essa mistificação, como em outros casos, servia para criar um clima de polarização política – eles contra nós, patriotas e traidores – que justificasse a necessidade, sempre renovada, de medidas excepcionais contra as ameaças verdadeiras ou supostas.

Depois do massacre de Belo Monte, a constatação de que a absurda tese de que Antônio Conselheiro e seus seguidores formassem um reduto monarquista que ameaçava de alguma forma a República desfez o espantalho da restauração monárquica como desculpa para o autoritarismo. De lá para cá, novas mistificações têm sido promovidas para sustentar a suposta necessidade de ações extralegais. No futuro, talvez, nos daremos conta de que algumas das ilusões que circulam hoje são tão patéticas como a ideia de que desde uma cidadela miserável do interior da Bahia partiria o movimento que estabeleceria o 3º Reinado no Brasil.

Seu livro também desmistifica a narrativa histórica de duelo entre Euclides da Cunha e Dilermando de Assis. Não houve o desafio do escritor ao amante da mulher e, sim, uma tentativa de pegá-lo de surpreso e matá-lo? Por que teria sido construída essa falsa narrativa heroica e romântica?

Euclides sabia da traição de Ana desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando. O casal teve outro filho no ano seguinte, que Euclides também soube que era de Dilermando, apesar de oficialmente assumir – outra vez – a paternidade da criança. Ainda que as consequências sociais da separação fossem muito mais pesadas para ela, Ana queria se separar e Euclides resistia. Somente em agosto de 1909, quando ela decidiu deixar a casa do escritor, onde a vida em comum já era insuportável, ele decide matar Dilermando e, quase certamente, também Ana. Na época, apesar de já ilegais, os duelos – com regras, padrinhos, etc. – eram socialmente aceitáveis.

Mas, na verdade, seria uma opção suicida para Euclides, pois Dilermando era campeão de tiro e certamente melhor espadachim. Assim, ele entrou na casa de Dilermando com a arma oculta, sendo recebido cordialmente, e atirou várias vezes antes que o militar pudesse alcançar seu revólver. Dilermando terminou tornando-se um homicida (duas vezes, depois mataria um filho de Euclides em circunstâncias comparáveis), mas jamais foi, tecnicamente, um assassino. A canonização laica de Euclides tem muitas razões, que examino no livro, mas não teria espaço aqui para detalhar.

A traição da esposa e a morte foram progressivamente sendo comparadas ao martírio, como na vida dos santos. No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram o papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de “lavar a honra com sangue”. O delegado que investigou o caso, por exemplo, chegou a dizer que Euclides fora atraído para uma armadilha e que Dilermando deveria ter fugido pulando o muro dos fundos da própria casa quando da chegada de Euclides (o que teria deixado Ana indefesa na casa).

Por que Euclides tolerou a traição de Ana durante tantos anos? Era preferível a vergonha dissimulada do casamento aparente ao golpe na reputação de um marido traído e de um militar respeitado publicamente?

No inquérito policial que se seguiu à morte de Euclides, Ana deu detalhes de sua relação com Dilermando para que, segundo suas palavras, “a imprensa e a sociedade não o estejam chamando de louco ao doutor Euclides da Cunha, quando ele não era mais do que um apaixonado pela sua reputação”. Com os elementos disponíveis, procurei resgatar a história da relação conjugal de Euclides e Ana, marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento.

A crise aguda no casamento dos dois durou de fins de 1905 a agosto de1909. Infelizmente, na sociedade brasileira da época, o desquite, ainda que possível juridicamente, trazia custos de reputação imensos, ainda que muito maior para as mulheres. Como muitas outras pendências de sua vida pessoal, Euclides não teve a determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se agravando e, afinal, acabou por preferir tornar-se um assassino e um feminicida, ou morrer na tentativa, como foi o caso. Por absurdo que nos pareça hoje, ele avaliou que esse desenlace, ou mesmo a própria morte, lhe causaria menores danos à reputação do que receber a pecha de ter sido conivente com a traição da esposa, ainda mais com um homem quase da idade de seus filhos.  


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