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Estado de Minas LITERATURA

Bob Woodward mostra como temperamento de Trump influencia em suas decisões

Em Raiva, o premiado jornalista sintetiza a personalidade de Donald Trump


08/01/2021 04:00 - atualizado 08/01/2021 07:53

Durante as entrevistas concedidas a Woodward, Donald Trump confessou que foi informado sobre a gravidade do impacto da COVID-19 nos EUA, mas não divulgou: 'Eu sempre quis minimizar isso'(foto: afp)
Durante as entrevistas concedidas a Woodward, Donald Trump confessou que foi informado sobre a gravidade do impacto da COVID-19 nos EUA, mas não divulgou: 'Eu sempre quis minimizar isso' (foto: afp)
A poucos dias de se encerrar a Era Trump nos Estados Unidos, e com o país mergulhado nas imagens grotescas de fanáticos, insuflados pelo ainda presidente da República, em sua tentativa – ao estilo Putsch de Munique (tentativa de golpe de Hitler, em 1923) – de impedir que o Congresso confirmasse na última quarta-feira a vitória eleitoral de Joe Biden, será lançado no Brasil, no próximo 14, Raiva (Todavia) – Rage, no original.

O autor é o jornalista veterano Bob Woodward, dois prêmios Pulitzer na carreira de meio século na cobertura política presidencial, que investigou reportagens do naipe do caso Watergate, responsável por nocautear em 1974 o republicano Richard Nixon, e adaptado para o cinema (Todos os homens do presidente) com Robert Redford interpretando o jornalista. Depois de Medo, é o segundo livro-reportagem de Woodward sobre este governo, a partir de 17 entrevistas realizadas com o presidente entre dezembro de 2019 e julho de 2020, período em que também apurou as narrativas de Trump em “centenas de horas” de conversas off the records com testemunhas participantes dos eventos, em documentos e diários.

O título Raiva sintetiza a personalidade de Donald Trump. Deriva de uma entrevista a Woodward e Robert Costa, em 31 março de 2016, no contexto das prévias para a indicação do candidato do Partido Republicano à Presidência da República. Woodward observou ao então pré-candidato Trump a presença de muita angústia e raiva entre republicanos. Ouviu como resposta, reiterada em 22 de junho de 2020: “Eu provoco raiva. Eu realmente provoco raiva. Sempre fiz isso. Não sei se é uma vantagem ou desvantagem, mas, seja o que for, é o que faço”.

Mentiras letais


Descrito como um narcisista, que gosta de se gabar de sua “genialidade e riqueza”, desprovido de empatia e incapaz de distinguir a verdade da mentira, Trump disse a Woodward, em 7 de fevereiro de 2020, ao discorrer sobre aquela que fora a sua mais recente conversa com Xi Jinping, na qual a emergência do novo coronavírus ocupara o centro da pauta: “Mas sabe, é uma situação muito complicada (...) Passa pelo ar (...) Isso é sempre mais difícil do que o toque. Você não precisa tocar nas coisas. Certo? Mas o ar, você simplesmente respira o ar e é assim que ele passa. Então, é muito complicado. É muito delicado. Também é mais mortal do que uma gripe intensa”.

Na entrevista seguinte, realizada em 19 de março, o presidente reiterou a intenção de mentir para o país e o mundo, salientando que as suas declarações nas primeiras semanas do vírus foram deliberadamente planejadas de forma a não chamar a atenção para o assunto. “Eu sempre quis minimizar isso”, disse ao jornalista. “Ainda gosto de minimizar, porque não quero criar pânico”, acrescentou. Portanto, igualmente, Woodward sabia que Trump tinha conhecimento da letalidade da doen- ça, embora a tenha sistematicamente negado.

Já em 28 de janeiro de 2020, durante a reunião do President’s Daily Brief,  Donald Trump foi advertido por Robert O’Brien, assessor de segurança nacional, da gravidade da crise sanitária por vir: “Essa será a maior ameaça à segurança nacional que o senhor vai enfrentar na sua presidência”. Com O’Brien concorda Matt Pottinger, vice-assessor de segurança nacional, que fora correspondente do Wall Street Journal na China, e fizera a cobertura em 2003 do surto fatal da síndrome respiratória aguda grave (Sars). Pottinger, que também participava da reunião, passara os últimos dias consultando especialistas chineses sobre a emergência do novo coronavírus em Wuhan, e ouvira deles: “Não pense na Sars de 2003. Pense na pandemia de gripe de 1918”.

A chamada gripe espanhola – que tem a Espanha no nome, embora tenha surgido num acampamento militar no estado americano do Kansas –, matou cerca de 50 milhões de pessoas mundo afora, entre as quais 675 mil norte-americanos. Menos de um ano depois daquele briefing presidencial, os Estados Unidos já registram mais de 357 mil mortes, segundo aponta o painel de controle da Universidade de Johns Hopkins. Uma realidade completamente diferente daquela propagada por Donald Trump, que embora soubesse da letalidade do vírus optou por mentir à população.

Não uma, duas ou três vezes. Em seu linguajar compulsivo e chulo, expôs os Estados Unidos e o mundo ao premeditado festival do negacionismo à doença, uma escalada não interrompida, iniciada com as primeiras declarações sobre o novo coronavírus, em entrevistas coletivas, quando anunciou: “praticamente fechamos tudo vindo da China” (2 de fevereiro); “Um dia desaparecerá, como por milagre” (27 de fevereiro); e “Nada fecha por causa da gripe” (9 de março).

Em seu relato sobre o governo Trump, Woodward descreve como o presidente não assume responsabilidades e menospreza aqueles que em algum momento cruzaram o seu caminho. Woodward exibe o retrato crítico de Trump desenhado por alguns de seus principais assessores. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, em comentário particular, considera a capacidade de concentração do presidente “como um número negativo”. Woodward também revela que o ex-diretor nacional de inteligência Dan Coats – que foi senador republicano do estado de Indiana – chegou a considerar a possibi- lidade de que Trump estivesse “no bolso” de Vladimir Putin, suspeitando “do pior”.

Em avaliação sobre Trump confidenciada ao secretário de Defesa, general reformado James Mattis, do Corpo de Fuzileiros Navais, Coats disse que este “não sabe a diferença entre a verdade e a mentira”. Por seu turno, Mattis via Trump como “perigoso” e “impróprio” para o cargo. Renunciou ao Ministério da Defesa quando considerou que as diretivas de Trump haviam mudado de “estúpidas” para “crimes estúpidos”. Era a Mattis que Trump se referiu quando, em certa reunião pautada pelas tarifas do aço, Trump soltou um de seus costumeiros impropérios: “Sem mencionar que meus malditos generais são um bando de maricas. Eles se preocupam mais com suas alianças do que com acordos comerciais”.

Após ter acesso a 25 cartas inéditas trocadas entre Trump e o norte-coreano Kim Jong-un, Woodward oferece alguns detalhes sobre o relacionamento entre ambos. Trump explica a sua conexão instantânea com Kim, valendo-se de analogia misógina: “Você conhece uma mulher. Em um segundo, você sabe se isso vai acontecer ou não”.

Em seu capítulo final, Woodward, confessando-se exausto pela apuração do livro, desabafa: “O país estava enfrentando um verdadeiro turbilhão. O vírus estava fora de controle. A economia em crise, com mais de 40 milhões de desempregados. Um poderoso ajuste de contas sobre racismo e desigualdade tinha sido iniciado. Não parecia existir um fim à vista, e certamente nenhum caminho claro para chegar lá”. Woodward prossegue classificando a presença de Trump como “opressora”, que adora um “espetáculo”, além de paradoxal, à medida em que é  capaz de ser amigável, ao mesmo tempo em que feroz.

Assinalando que em momento de crise o operacional é mais importante do que o político e o pessoal, Woodward crê que para dezenas de milhões de pessoas a otimista história americana se tornou “um pesadelo”. E esse jornalista, que já escreveu sobre nove presidentes, vaticina: “Quando seu desempenho como presidente é analisado como um todo, só posso chegar a uma conclusão: Trump é o homem errado para o cargo.”

Raiva
Bob Woodward
Tradução de Pedro Maia, José Geraldo Couto, Bernardo Ajzenberg e Rosiane Correia de Freitas.
Todavia Editora
416 páginas
R$ 94,90(E-book: R$ 39,90).


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