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Estado de Minas LITERATURA

Livro mostra como a literatura moldou o mundo nos últimos quatro mil anos

Escrita permitiu acesso do Homo sapiens ao seu próprio passado, mesmo sob constantes ataques, até mesmo do filósofo grego Sócrates, que via na escrita uma ameaça ao conhecimento


11/09/2020 04:00 - atualizado 11/09/2020 08:50

“A verdade estava justamente em não escrever: as pessoas já não se preocupavam em se lembrar das coisas, preferiam confiar na nova tecnologia, e a capacidade de pensar se deterioraria (…) Escrever era apenas uma sombra muda do discurso, uma técnica que captava palavras, mas sem o som, a respiração, a alma. Era apenas um dispositivo mecânico, uma tecnologia, com enormes desvantagens. Não seria possível perguntar a um texto escrito questões adicionais; as palavras seriam tiradas do contexto em que foram pronunciadas, o que as levaria a ser inevitavelmente incompreendidas, fora do controle do seu autor; as palavras sobreviveriam à morte do seu orador, de tal modo que ele não poderia refutar as interpretações falsas que pudessem surgir mais tarde.”

Parece incrível hoje em dia, mas essas declarações de resistência à escrita partiram de Sócrates (469/470 a.C.-399 a.C.), pensador grego considerado o pai da filosofia ocidental. Se hoje conhecemos Sócrates e atribuímos principalmente a Platão (428/427 a.C-348/347 a.C.), seu principal discípulo, a iniciativa de ter colocado no papiro os ensinamentos do mestre, na época a história era outra. Entre todos os grandes sábios que se recusaram a escrever – Buda, Confúcio, Jesus e Maomé são os principais –, Sócrates foi o mais contundente ao rejeitar a escrita de forma tão explícita.

“Essa restrição mostrava até que ponto a escrita se tornara uma força cultural”  já naquele tempo, diz o professor de literatura comparada Martin Puchner, da Universidade Harvard (EUA), autor do curioso livro O mundo da escrita –  Como a literatura transformou a civilização, recém-lançado no Brasil.

“Sendo uma tecnologia associada à linguagem, a escrita havia alterado e ampliado o modo como os seres humanos se comunicavam e até mesmo como pensavam. Essa ascensão triunfal estava provocando forte reação liderada por professores carismáticos como Sócrates”, explica Puchner. O principal filósofo grego, como se sabe, teve julgamento e condenação política por causa de suas ideias e morreu na prisão após ingerir cicuta.

Considerado esquisito e feio, Sócrates não frequentava banheiros públicos, estava sempre desgrenhado e descalço. Tinha muitos inimigos por causa de suas pregações iconoclastas que questionavam até mesmo Homero, mito e quase deus grego. Mas tinha também muitos discípulos. Não deixou nada escrito, não porque fosse analfabeto, pelo contrário, seria uma postura com receio de ter suas ideias mal interpretadas.

Atenas, entretanto, era um dos lugares mais letrados do mundo no fim do século 5 a.C. “Graças ao alfabeto grego, escrever era muito mais fácil de aprender do que os sistemas de escrita mais antigos – 24 letras combinavam perfeitamente com os sons, o que significava que o grego escrito era próximo do grego falado”, cita Puchner para justificar o predomínio da língua dessa civilização europeia no mundo deste então e até hoje, exceto no Leste da Ásia.
Escritas cuneiformes em argila, datadas de 1800 a.C.(foto: adobe stock)
Escritas cuneiformes em argila, datadas de 1800 a.C. (foto: adobe stock)

LÍNGUA APENAS FALADA MORRE

Para mostrar como a escrita e, a partir dela, a literatura moldaram as civilizações, Puchner se debruçou sobre 4 mil anos de história (já após os hieróglifos egípcios), desde os símbolos cuneiformes sumérios. Ele viajou pelo mundo em busca dos primórdios da escrita, que, segundo ele, foi inventada duas vezes, primeiro na Mesopotâmia, por volta de 3000 a.C., e depois na América pré-colombiana, com os maias.

Os primeiros registros são de 1800 a.C. na Mesopotâmia (atual Iraque) e começaram a ser revelados a partir de 1845, quando o viajante inglês Austen Henry Layard (1817-1894), que estava indo para o Ceilão (atual Sri Lanka) assumir um cargo no serviço público colonial, desviou do seu caminho e resolveu a fazer escavações no rastro de arqueólogos em Mossul, no Iraque. Ele sabia que essa era a localização aproximada da antiga cidade de Ninive, cuja destruição é mencionada na Bíblia.

Ao abrir uma trincheira e cavar fundo, Layard encontrou paredes, aposentos e alicerces e acabou desenterrando uma cidade de barro inteira, com estátuas e paredes e tabuletas com inscrições em baixo relevo com caracteres cuneiformes, um sistema de escrita feito com incisões em forma de cunha na argila ou na pedra.

Era uma espécie de biblioteca que exigiria muito trabalho para ser decifrada, mas que poderia contar a história da civilização assíria. Layard enviou boa parte do material para Londres e, depois de anos de estudos para decifrar a escrita cuneiforme, veio a surpresa: era mesmo Ninive e, mais do que isso, as tabuletas revelaram a primeira obra-prima da literatura da humanidade, a Epopeia de Gilgamesh, que falava de um rei da região de Úruk. O Gilgamesh descrito nas tabuletas era um herói daquele tempo que narrava sua própria história.

“Quando a tabuleta com a história do dilúvio foi decifrada (traduzida do acádio), os assiriólogos causaram sensação: a Inglaterra vitoriana teve de aceitar que a narrativa bíblica do dilúvio fora emprestada da Epopeia de Gilgamesh, ou que ambas derivavam de um texto ainda mais antigo”, conta Martin Puchner. Não era difícil explicar a ocorrência de inundações frequentes por causa da proximidade dos rios Tigre e Eufrates, que faziam os canais de irrigações transbordarem.

Na verdade, Layard descobriu a cidade do rei Assurbanípal e sua biblioteca, cujo reino é datado de 670 a.C., que havia, por sua vez, preservado as tabuletas de Gilgamesh, de mais de mil anos antes. Naquela época, a linguagem escrita era dominada pelos escribas, que praticavam o ofício de imprimir palavras sobre argila, uma importante ferramenta de poder por levar mensagens em tabuletas de cinco por sete centímetros de largura com minúsculas incisões em forma de cunha para regiões distantes. Esse material nada tinha de literário, era apenas técnica de contabilidade, diz o professor.

“Assurbanípal percebera que escrever não era útil apenas para transações econômicas ou administrativas; as tabuletas cuneiformes eram extensões artificiais da mente humana que permitiram o acúmulo de conhecimento”, ressalta. Enquanto eram apenas faladas, as línguas morriam quando seus falantes desapareciam, mas fixadas na argila persistiriam.” Assim, a escrita criou a história com mais efetividade a partir do século 7 a.C. com a biblioteca de Assurbanípal.

HOMERO E ALEXANDRE

Ainda antes da Bíblia e das escrituras sagradas, outra narrativa épica fundamental, mítica ou não, foi a Ilíada, de Homero. A “Bíblia grega” surgiu não como escrita ou literatura, mas como tradição oral, datada da Idade do Bronze, cerca de 1200 a.C., com a destruição da lendária Troia pelos gregos. Por volta de 800 a.C., viajantes da Fenícia (atual Líbano) tiveram notícias de um sistema de escrita diferente de todos os outros, que eram sinais que representavam objetos ou ideias, como casas ou vacas, por exemplo, que facilitavam a memorização. O alfabeto fonético grego forneceu as vogais longas e acentuadas que permitiam a difusão das histórias da Guerra de Troia.

A Grécia se tornou a sociedade mais letrada de então. É dessa época o termo “bárbaro”. “O império grego compreendia dezenas de línguas e culturas. Os gregos eram famosos por relutar em aprender línguas estrangeiras. Seu desprezo pelos povos não gregos estava intimamente ligado à linguagem e à escrita. Os outros chamados de bárbaros porque sua fala era incompreensível para eles, soando aos seus ouvidos como 'barbarbar' (bárbaros). 

A Ilíada era o texto pelo qual todos os gregos aprendiam a ler e a escrever. Mas a conquista heroica de Aquiles, entretanto, o maior guerreiro da Ilíada e essencial na destruição de Troia, era restrita ao mundo grego. Foi macedônio Alexandre, o Grande (353 -323 a.C), maior rei e guerreiro da Antiguidade – que conquistou o maior império de então, o persa de Dario, e quase todo o mundo conhecido da época, da Grécia, passando pelo Egito, até a Índia –, o responsável pela disseminação da Ilíada, seu livro de cabeceira, e do alfabeto grego, no período conhecido como Helenismo, que durou desde sua ascensão até a derrocada para o Império Romano, 200 anos depois.

A BIBLIOTECA E O GOOGLE 

“O serviço mais importante que Alexandre prestou à literatura ocorreu no Egito (…) Seu ato mais importante para helenizar o Egito, do qual foi coroado faraó, era inspirado, como tantas vezes, por Homero, quando planejava fundar uma nova cidade. Ele sonhou com um trecho de Homero que sugeria o local mais adequado”, conta Puchner.

Assim nasceu a cidade costeira de Alexandria, no Rio Nilo, onde Alexandre mandou construir a grande biblioteca. “Quando os navios chegavam para transações mercantis em Alexandria, diziam-lhe que, antes de mais nada, deviam compartilhar com a biblioteca quaisquer escritos que levassem a bordo. Empregando um exército de copistas para copiar tudo, Alexandria acabou por criar a maior coleção de rolos de papiro do mundo, na esperaça de abrigar todos os livros disponíveis – uma ambição recentemente reavivada pelo plano do Google de organizar todas as informações e torná-las acessíveis a todos no mundo”, compara Puchner, que define: “A escrita criou a história”. Permitir o acesso ao passado foi a mais profunda consequência da escrita


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