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Corpo livre, mente livre

Biografia O revolucionário do tesão recupera trajetória libertária do escritor e psiquiatra Roberto Freire, criador da somaterapia e autor de livros populares nos anos 1970, como Cleo e Daniel


postado em 01/05/2020 04:00

Roberto Freire, autor de livros como Sem tesão não há solução Ame e dê vexame: em defesa da fúria do corpo e da alma(foto: )
Roberto Freire, autor de livros como Sem tesão não há solução Ame e dê vexame: em defesa da fúria do corpo e da alma (foto: )
O prazer como combustível vital, que acende expectativas e a esperança, impulsiona para a ação em todas as atividades humanas. Muito além do desejo sexual, o termo “tesão”, popula- rizado na década de 1970, alicerça o pensamento do anarquista e multifacetado Roberto Freire (1927-2008). A trajetória desse médico de formação, que lançou os fundamentos no Brasil da técnica terapêutica denominada Soma (somaterapia) –, baseada em conceitos do anarquismo articulados com a teoria psicanalítica de Wilhelm Reich –, foi sobretudo a de um “agitador cultural”. Roberto Freire apresentou o seu ideário à vida intelectual brasileira por meio da intensidade de um percurso, seja como escritor, como autor de telenovelas, como dramaturgo, como jornalista, pesquisador ou como terapeuta.

No Brasil de hoje – em que o contraponto da censura e da moralidade avançam sobre a ima- ginação, o pensar, a arte e a cultura –, relançar  Roberto Freire, um homem que durante a ditadura militar atuou na Ação Popular e conheceu os percalços das prisões, foi o desafio encarado por Paulo José Moraes. Em O revolucionário do tesão – A incrível história do psiquiatra e escritor Roberto Freire, o Bigode (Editora Reformatório), Moraes reconstitui a trajetória desse “agitador cultural” sob o olhar de muitos daqueles que conviveram com Roberto Freire em diferentes momentos de sua trajetória de vida.

Popularmente apelidada de “a ideologia do prazer”, esta foi, para Roberto Freire a arma revolucionária. Em crítica poética à moral imposta pelas sociedades hierarquizadas, Roberto Freire considerava que tal rigidez cumpre a função da conformação, sepultando utopias e sonhos, preço social cobrado para a aceitação individual. Em ênfase a uma existência apaixonada, Freire se preocupava mais com a forma como se vive, do que com a vida propriamente dita: “É o amor e não a vida, o contrário da morte. Precisamos distinguir entre estar vivos e morrer”. Ao apontar para os grilhões impostos em nome da aceitação social, Roberto Freire considerava que na autoexpressão de desejos cada um abre as portas para se constituir verdadeiramente como pessoa, as portas de um “inconsciente futuro”, de esperança, intuição e criatividade.

Paulo José Moraes destaca que  Roberto Freire propunha a defesa de uma ética da existência anarquista à semelhança de um socialismo libertário, buscando na contracultura que emerge a partir de maio de 1968 velhas reivindicações do anarquismo: o feminismo, o movimento ecológico, a crítica ao autoritarismo familiar e escolar e os direitos dos trabalhadores, a rejeição a todas as formas de dominação e opressão. Buscava, nesse sentido, novos modos de relações sociais e de vida, em que a felicidade emerge como potência. É assim que a ação política perpassa toda a teoria de Roberto Freire e seria a partir da libertação individual que, na visão dele, se daria, de modo solidário à libertação coletiva – a forma de resistência aos estados autoritários.

Paulo José Moraes e Roberto Freire tangenciam ao longo de suas trajetórias formação co- mum. Ambos médicos, terapeutas, com ampla presença no meio artístico e intelectual. Foi a partir dessa constatação que, segundo relata Moraes, o músico e compositor João Bid e a diretora de teatro e historiadora Lisa Camargo o desafiaram, certa noite: “Paulo, você é psiquiatra e terapeuta. O Roberto Freire também foi. Você é jornalista, ele também foi. Você trabalhou na Globo, ele também. Ele escreveu vários livros, você já publicou um também. Ele escreveu Cleo e Daniel. Você dirigiu uma adaptação do livro no teatro. Aliás, ele foi muito ligado ao teatro, você também é. Ambos sempre estiveram muito perto da música popular brasileira. Ele teve o apelido de Bigode e você de Barbicha. Por que você não escreve a biografia dele?”

A ideia germinou e tornou-se um projeto. “Roberto Freire, a meu ver, foi um dos mais importantes psiquiatras e terapeutas que passaram pelo Brasil, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo quando escreveu na revista Realidade, fundou o Tuca, dirigiu Morte e vida severina, do agora centenário João Cabral de Melo Neto, criou a Escola de Teatro Macunaíma, foi jurado de todos os festivais de MPB importantes que aconteceram no Brasil, lançou Chico Buarque e Plínio Marcos no cenário artístico, e, principalmente, escreveu uma obra-prima que foi o romance Cleo e Daniel”, discorre o autor, também salientando a participação de Freire, ao lado do jorna- lista Sérgio de Sousa, conhecido como Serjão, na fundação, em 1997, da revista Caros Amigos. Freire e Serjão foram amigos fraternos de longa data, mas, assim como em muitas outras de relações fraternais de Freire, caminharia para a ruptura definitiva.  

Entre os mais de 30 livros lançados por Roberto Freire, tiveram grande repercussão  Cleo e Daniel, Sem en trada e sem mais nada, Coiote e os ensaios Utopia e paixão, Sem tesão não há solução e Ame e dê vexame. Escreveu também contos eróticos, literatura policial e infantil e, em 2003, lançou a autobiografia Eu é um outro. 

Liberdade sexual

O debate conceitual das ideias anarquistas de Roberto Freire, que perpassa os seus romances e a própria concepção da somaterapia, não é o foco principal do livro de Paulo José Moraes. Embora mais focado na reconstrução da trajetória do biografado sob o olhar daqueles que fizeram parte de sua vida, o autor dedica muitas passagens para descrever como a obra de Roberto Freire convergiu para pontos da teoria psicanalítica do austríaco Wilhelm Reich, ex-colaborador de Sigmund Freud.

“O grande agitador cultural que tinha dominado suas ações nos anos 1960 e 1970 chega até o meio dos anos 1980 provocando um monte de gente do teatro, da música, da TV, das crônicas em jornais e revistas, e foi se aquietando enquanto um novo caminho de agitação tomou seu lugar: a somaterapia”, conta Paulo José Moraes. O autor assinala que a escolha sexual livre, sem particularizar gênero, rompia cadeados culturais, questionando as maneiras de convivência tradicionais. “O modelo capitalista, assentado secularmente em modelos que foram assim questionados, sofreria com essa ação. Era o anarquismo em ação contra os alicerces psicossociais”, registra Moraes, acrescentando que o estímulo ao pensamento, por meio da filosofia, da criatividade, das artes, do uso do próprio corpo, de jogos e atividades físicas, provocava possibilidades de ruptura no que era tradicionalmente estabelecido.

Para reconstituir sob múltiplos olhares a trajetória de Roberto Freire, estão entre os entrevistados do livro familiares como a médica Gessy (primeira mulher dele), com que teve três filhos, dois dos quais também deram depoimentos para o livro: Pedro, apelidado Tuco; e o músico Paulo. O terceiro filho do casal também se chamava Roberto. Apelidado de Beto, mora fora do Brasil e, segundo depoimentos dos irmãos, houve mágoas não superadas entre pai e filho. Também falam no livro namoradas de Roberto Freire, como a psicóloga social Vera Schroeder; assim como o fotógrafo Alexandre Campbell, o Xande, com quem Roberto Freire viveu longo relacionamento afetivo após se separar da primeira mulher.

Entre intelectuais, pesquisadores, jornalistas e artistas aparecem interações de Roberto Freire com personalidades como Chico Buarque, Sérgio Mamberti, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Frei Betto e Ignácio de Loyola Brandão. O terapeuta João da Mata, “herdeiro” e quem hoje está à frente da somaterapia no Brasil, em- prestou longo depoimento ao livro. João da Mata salienta como o percurso de vida fundado em princípios libertários do anarquismo valoriza um processo autoral de se fazer na própria existência. Algo como a estética da existência ou a forma como cada um constrói as suas rotas e percursos, nos termos de Maria Bethania: “Só vou por onde me levam meus próprios passos...”

ENTREVISTA
Paulo José Moraes
biógrafo

‘‘Se estivesse aqui, acredito, Roberto Freire estaria indignado 
com o tratamento que recebem a arte e a cultura’’

Após refazer o percurso de Roberto Freire, o que de mais brilhante e revolucionário o senhor destacaria na trajetória dele?
Uma característica forte do Roberto Freire, que tinha o apelido de Bigode, era a de agitador cultural. Teve uma presença marcante na vida intelectual e cultural brasileira, atuando como escritor, dramaturgo, cineasta, roteirista de TV e jornalista. Era médico de formação e tinha uma paixão pela arte e cultura que fizeram dele o agitador cultural de uma época. Foi algo que não planejou ser. É nessa paixão pela arte e cultura, e nas várias atividades em que se engajou, que Roberto Freire vai se expressar de forma revolucionária, inclusive ajudando a divulgar talentos como Chico Buarque e Plínio Marcos.

Como o senhor define o conceito de “tesão” na obra de Roberto Freire, a ideia de prazer nesta produção artística e cultural?
Por toda a vida, o que move a atuação de Roberto Freire é a ideia do prazer, do tesão como algo que impulsiona todas as atividades da vida: amar, criar, escrever, compor, aprender, qualquer coisa que o ser humano faça de forma livre, sem amarras, sem censuras, com muita vontade, com prazer, com  tesão. Assim ele aborda uma espécie de ideologia do prazer como arma revolucionária contra sociedades autoritárias, socialmente hierárquicas e desiguais. São temas que Roberto Freire trata em vários de seus livros, como Utopia e paixão, Sem tesão não há solução e Ame e dê vexame. Ele foi teórico do anarquismo, deu cursos de pedagogia libertária, portanto, era um universo em que buscava a libertação individual contra todas as formas de autoritarismo que também se expressam nas relações interpessoais e limitam a expressão individual. É a partir da libertação individual que se dá o engajamento e apoio à libertação de outros indivíduos, no sentido de que ninguém larga a mão de ninguém. Então, é a ideia de libertação coletiva, vamos juntos dar sentido à transformação, buscando uma sociedade mais igualitária e libertária, promovendo libertação social. Uma frase do livro Cleo e Daniel, um de seus grandes sucessos, sintetiza bem a ideia do tesão como potência de vida: É o amor, e não a vida, o contrário da morte.

 Alguns dos seus entrevistados lamentam a ausência que Roberto Freire faz no Brasil de hoje. Como o pensamento de seu biografado convive com o Brasil atual?
Nesta crise sanitária, quando o presidente tenta contrapor a questão da saúde à economia, busca uma estratégia de tentar justificar uma opção de vida, a de não se preocupar com o outro. E quando vemos esses seguidores que aprovam suas ideias, vamos lembrar que o fato de alguém ter seguidores não lhe garante a sanidade. Há um ato patológico no fato de existirem pessoas que glorificam, mitificam a ideia de alguém, ainda que essa pessoa chamada “mito” tenha ideias desvairadas e fora da lógica. Se estivesse aqui, acredito, Roberto Freire estaria indignado com o tratamento que recebem a arte e a cultura. E alertando os jovens de que a busca de liberdade e de escolhas, a imersão no universo virtual da internet, não deve se dar, como vemos tanto hoje, pela alienação para as questões da sociedade. A libertação individual deve ser propulsora também de uma libertação coletiva, uma transformação social.  

O revolucionário do tesão – a incrível história do psiquiatra e escritor Roberto Freire, o Bigode
De Paulo José Moraes
Editora Reformatório
361 páginas
R$ 48


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