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Estado de Minas

A MORTE PEDE CARONA

As obras de Saramago, Camus e Scliar que anteciparam o sombrio ano de 2020


postado em 10/04/2020 04:00 / atualizado em 09/04/2020 22:14

(foto: lelis)
(foto: lelis)

 

 Quando os sentimentos mais elementares – egoísmo, preconceito, ignorância e ódio –, tomam forma e dão as mãos em torno do seu criador, o Homo sapiens, todas as vidas no planeta estão ameaçadas, principalmente a humana. Se não por guerras, por pestes. Assim tem sido através dos milênios, desde 300 mil anos atrás, nas savanas africanas, florestas, margens dos rios e cavernas. Até que no século 15 veio a pandemia mais devastadora de todas, a peste negra (bubônica), causada por uma bactéria transmitida por pulgas de ratos contaminados, que teria matado a metade da população europeia e boa parte da Ásia Central, ou seja, 100 milhões de pessoas. Consequência de quê? Ódio, ignorância e guerra. Sim, a peste virou até arma de guerra entre exércitos que chegaram a jogar corpos para contaminar o inimigo, num estúpido efeito bumerangue. Há exatos 100 anos, outra peste, a gripe espanhola, causada pelo vírus influenza, infectou um quarto da população mundial e pode ter matado 50 milhões de pessoas. Apesar do nome, sua origem mais aceita são campos de treinamento militar nos EUA, de onde soldados seguiram para a Primeira Guerra Mundial na Europa. No Brasil, essa gripe matou até o presidente da República. Agora, os dias sombrios e paranoicos em que vivemos recolhidos dentro de casa, ameaçados por outro inimigo invisível, o coronavírus, trazem de volta à nossa memória essas tristes lembranças e nos proporcionam boa reflexão sobre quem somos e o que fazemos no planeta. Não aprendemos as trágicas lições do passado. Um grande puxão de orelha vem de três livros significativos. A peste, Ensaio sobre a cegueira e Sonhos tropicais têm muito a ver com o momento atual porque são permeados por esses sentimentos elementares, que se debatem nas obras com outro cinco positivos, antídotos que o próprio Homo sapiens poderia usar para fugir de desgraças e da morte: solidariedade, tolerância, sabedoria e amor. Isso posto, vamos às histórias:

 

 

"OS MALES DO MUNDO VÊM DA IGNORÂNCIA"

 

No primeiro dia, o médico Bernardo Rieux viu um rato morto no seu andar. Achou estranho porque não havia ratos no prédio, mas afastou o bicho com o pé, desceu a escada e avisou o porteiro. No fim do dia, quando voltou para casa e procurava a chave antes de subir, viu um rato enorme cambaleando no fundo escuro do corredor. O roedor parou, tentou se equilibrar, andou de novo na direção do doutor, deu uma cambalhota e com um chiado caiu inerte com sangue no focinho. Rieux o examinou e subiu. No dia seguinte, o porteiro, colérico, lhe disse que alguém tinha apanhado os animais em ratoeiras grandes, por isso o sangue, e jogado no prédio.

 

Mas ao começar sua visita aos pacientes pelos bairros mais pobres, o médico começou a notar ratos e mais ratos doentes ou mortos. “Eles estão saindo, hein, doutor?”, disse o velho espanhol ao receber a injeção. Rieux notou então que o bairro inteiro falava dos ratos mortos. No outro dia, já eram centenas. E no seguinte milhares na cidade inteira. A população, entretanto, não tinha dimensão da catástrofe. Até que noutro dia, o doutor, parando o carro em frente à sua casa, viu no fim da rua o porteiro andando lentamente, cabeça baixa, pernas e braços desgovernados como um boneco, apoiado no braço do padre. A respiração era um assovio, e ele disse que tinha dores no pescoço, nas axilas e nas virilhas e febre alta. A morte pegara carona nos ratos e na ignorância e chegara aos humanos.

 

Assim começa A peste, livro do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), prêmio Nobel de Literatura em 1957, que virou referência no mundo de hoje, 60 anos após a sua morte, completados em 3 de janeiro, aos 46 anos, num acidente de carro. Não é para menos. A praga do coronavírus, embora letal, não tem sintomas tão cruéis como a peste bubônica, que provoca abcessos purulentos, dores terríveis, delírios e definhamento do doente. Mas a analogia é inevitável por razões diversas.

 

Camus é reconhecido pela sua estética ou filosofia do absurdo da condição humana, a tendência em buscar significado para a vida, o que gerou no seu caso um conflito diante da finitude marcante em época de grandes tragédias, como a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Ele se engajou na Resistência Francesa à ocupação nazista e logo depois lançou A peste, na segunda metade dos anos 1940. A morte que vem dos ratos e vai tomando conta da cidade argelina de Orã é a praga do nazismo na metáfora de Camus E o que logo chama a atenção na obra é a indiferença das autoridades e da população com o avanço de uma moléstia fatal.

 

A aparição de ratos doentes ou mortos é considerada “pilhéria” de algum engraçadinho pelo porteiro e não tão preocupante pelo prefeito. Qualquer semelhança com o coronavírus não é mera coincidência. Afinal, é um “vírus chinês” que causa “gripezinha”. Por ironia, o porteiro morre com a peste. Entre as duras memórias de pragas de outros tempos, Rieux lembra as “carretas de mortos a apavorar Londres”. Por estes dias, vimos o chocante comboio de caminhões com corpos abatidos pelo coronavírus em Bergamo, na Itália. Em Orã, os corpos se acumulam, mas a população segue a vida normal.

 

E tem ainda a resistência ao isolamento. “Apesar do espetáculo anormal, os habitantes tinham dificuldades em perceber o que acontecia. Alguns sentimentos eram comuns, mas as preocupações pessoais venciam tudo.” O médico filosofa: “Os males do mundo vêm quase sempre da ignorância”. Tanto descaso deu no que deu. A corrida de Rieux agora era para conseguir uma vacina rápida. Enquanto isso, a aflição toma conta. “O hábito do desespero das pessoas separadas é pior do que o desespero (…) e é preciso dizer que a peste suprimira em todos o amor e a amizade”, constata.

 

O médico se lembrou, então, de um mundo atemporal: “Ouvindo o rumor alegre da cidade, pensava que essa alegria estava sempre ameaçada. A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços – e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz.” Parece uma profecia de Camus.

 

Trecho de a peste

 

“Ninguém se convencia da realidade. Em geral, as pessoas eram sensíveis ao que as prejudicava os hábitos ou interesses. Irritavam-se, impacientavam-se, e isto nenhuma influência tinha sobre a peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar o governo. 'Não seria possível tornar mais flexíveis as medidas (de isolamento)? O aviso de que na terceira semana de peste havia trezentas e duas mortes não lhes falava à imaginação. O descontentamento crescia. Os jornais publicavam decretos que renovavam a proibição de sair às ruas e prometiam cadeia aos transgressores. O hábito do desespero das pessoas separadas é pior do que o desespero (…) e é preciso dizer que a peste suprimira em todos o amor e a amizade, porque o amor exige um pouco de futuro – e já não havia para nós senão instantes.”

 

FECHE OS OLHOS E VEJA

 

O motorista parou o carro no sinal vermelho. Quando surgiu o verde, e ele deveria arrancar, ficou parado. A turma de trás buzinou, mas o motorista se desesperou, estava cego, uma cegueira branca como leite. Desespero e buzinaço. Ele precisaria da solidariedade de alguém para sair dali. Foi ajudado por um homem que o levou até sua casa no carro. Tentado, entretanto, o solidário se tornou ladrão, levou o carro do novo cego, mas logo adiante também, de repente, ficou cego. Enquanto isso, o motorista, ajudado pela mulher, procurou um oftalmologista, que o examinou e espantou-se por não enxergar nada de errado nos olhos para explicar a cegueira. Mandou o coitado ficar de repouso. Ao chegar em casa, à noite, ainda intrigado, o médico dos olhos, repentinamente, também ficou cego, uma cegueira branca inexplicável. Desesperou-se. Afinal, poderia ser uma epidemia, e ele não havia se isolado da esposa ao seu lado para não contaminá-la. Aos poucos, os casos de cegueira vão se multiplicando pela cidade. Inexplicavelmente. As autoridades, aturdidas, precisam tomar providências, mas não sabem o que fazer diante do inusitado. O jeito é o isolamento. Começa então um mutirão para aglutinar todos os cegos repentinos num manicômio abandonado e pensar numa solução. Ou largá-los lá.

 

Eis o início, em linhas sintéticas, de Ensaio sobre a cegueira, uma alegoria do escritor português José Saramago (1922-2010), prêmio Nobel de Literatura em 1998, sobre a cegueira mental de todos nós. Juntos e misturados num lugar estranho, todas aqueles pessoas precisarão uma das outras, de solidariedade, afeto e lucidez para sobreviver e quase sempre baseando-se em seus instintos primários.

 

Saramago usa seu imenso talento para a linguagem escrita, com frases compridas, vírgulas em vez de pontos, sem travessões nos diálogos, o que chega a intrigar o leitor se está diante de um diálogo real ou de um pensamento apenas. No contexto da obra, alimenta a angústia dos personagens cegos que parecem chamar o leitor para junto deles. O leitor, então, é também o espectador dessa tragédia humana ao acompanhar o avanço da degradação e da brutalidade.

 

Aparentemente, a cegueira branca é fisiológica, mas a metáfora de Saramago é mais profunda, a cegueira é uma viseira existencial. Os olhos estão abertos, mas não vêm. Os novo cegos percebem suas limitações, precisam enxergar seu egoísmo, sua indiferença para com os outros, sua falta de solidariedade. Ali, sozinhos, amparados e ao mesmo tempo desamparados pelo governo, confinados por uma epidemia, eles precisam refletir porque a solução não parece vir de fora, está dentro de cada um. A epidemia vem dentro, de um autocontágio.

 

O solidário que virou ladrão agora precisa da solidariedade alheia. O médico autossuficiente, que sempre cuidou dos outros, também agora precisa de quem cuide dele. Nada disso está escrito claramente na linguagem peculiar de Saramago. Mas, para bom leitor, meia palavra basta. No caso de Saramago, nem isso, sua crítica ácida aos costumes sórdidos está nas entrelinhas. É preciso fechar os olhos para ver, não com os olhos da cara, mas os olhos da alma, enxergar a estupidez, o egoísmo iludindo o amor ao próximo. Ali, confinados, os cegos precisam de tolerância e humildade, virtudes elementares, mas raras para voltar a ver o mundo com outros olhos.

 

 

Trecho de ensaio sobre a cegueira

 

“Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, E ele não vai. Ficou ali parado no meio da rua, Ele e os outros estão assustados, não sabem para onde, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicômio, e aventurar-se, sem mão de guia numa trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar apenas a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar. Postados diante do edifício que já arde de uma ponta a outra, os cegos sentem na cara as ondas vivas do calor do incêndio como algo que de certo modo os resguarda, tal como as paredes tinham sido antes, ao mesmo tempo prisão e segurança. Mantêm-se juntos, como um rebanho, nenhum deles quer ser a ovelha perdida.”

 

 

A revolta da vacina

 

Rio de Janeiro, novembro de 1904: barricada nas ruas, bondes incendiados e trilhos arrancados em protesto contra um governo republicano novato impondo uma lei considerada absurda e um médico alucinado por vacina, que ninguém sabe para que serve direito. Isolamento, nem pensar. O carro puxado por dois cavalos que conduz o sanitarista Oswaldo Cruz é cercado por manifestantes transtornados. O cenário é de epidemia, ou melhor, de epidemias, que estão aí por aí desde o tempo das cavernas, mas agora devoram a fétida capital do Brasil, onde toneladas de lixo estão acumuladas nas ruas, ambiente perfeito para mosquitos e ratos, vetores de doenças que matam milhares de pessoas todos os anos. Os navios não atracam mais na cidade. Os turistas sumiram, também passam ao largo, já sabem da má fama da cidade doente. São as pestes da varíola, febre amarela, bubônica, tifo, sífilis... E não tem conversa, a polícia e os agentes sanitários estão autorizados a invadir comércio e casas, limpar e obrigar todo mundo a levar a desgraçada lancetada contra a varíola. A recusa à vacinação em massa implica multa, mas ninguém aceita. Mais de 30 mortos e cem feridos. Está em curso uma insurreição popular de consequências imprevisíveis.

 

Assim, em outras palavras, a Revolta da Vacina salta das páginas de Sonhos tropicais, obra singular do escritor e médico especialista em saúde pública Moacyr Scliar, (1937-2011). O autor gaúcho reconstitui um dos principais conflitos populares da vida social e política do Brasil em saborosa ficção baseada em fatos contundentes, vencedora do prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, em 2003.

 

O fio da meada da obra está em dois tempos. No fim do século 20, enquanto espera a chegada ao Rio de um norte-americano que pesquisa a vida do sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), um médico conta a vida e a luta desse cientista pioneiro que combateu as epidemias que grassavam na capital federal noventa anos antes, com políticas rigorosas de saneamento que revoltaram a população atolada na ignorância.

 

Mas não foi apenas a vacina a causa da revolta. Ela foi o estopim. O presidente Rodrigues Alves, que assumira em 1902, começou a sanear e reurbanizar a capital e nomeou Oswaldo Cruz com plenos poderes como diretor da Saúde Pública. Ruas foram alargadas, cortiços destruídos e a população pobre empurrada para os subúrbios, o que deu início à favelização hoje tão notória e desigual. Com essas ações impopulares e uma lei obrigatória de vacinação, a revolta estourou numa cidade recém-saída da escravidão que crescia a passos largos. Foi tão forte a revolta que o governo recuou e tornou a vacinação facultativa.

 

Em Sonhos tropicais, a analogia com os dias atuais também é inevitável por causa das fake news. Uma delas era que quem tomasse a vacina ficaria deformado, até com feições bovinas. Exemplo de personagens do livro: “Em primeiro lugar, há muitas suspeitas contra o procedimento de que, afinal, é feita essa tal vacina? 'Ih, seu Ambrozo. O tal negocio da vaccina é um horrô! É memo. Me disseru que os taes dotô vão botá na gente sangue de rato podre'. Depois há restrições contra os vacinadores, que obrigarão as mulheres a exporem os braços e talvez até as coxas para sem picadas pela lanceta”.

 

Assim, independentemente da lei autoritária e do falso puritanismo, Oswaldo Cruz e outros sanitaristas enfrentaram forte resistência da sociedade civil e de opositores de Rodrigues Alves, que politizaram a questão. E viraram também chacota na imprensa, principalmente a que não coadunava com a política oficial, e até de intelectuais ainda ignorantes sobre os meios de contágio.

 

E, ironia do destino, quando em 1908 o Rio teve a pior epidemia de varíola da história, a população correu atrás das vacinas. E outra ironia, Rodrigues Alves, logo depois de se reeleger presidente, não reassumiu, porque morreu com a gripe espanhola que assolava a capital, em 1919.

 

Um século depois, em plena pandemia de coronavírus, estão aí as fake news, agora com a força da internet, e as teorias absurdas, que vão desde o terraplanismo até as vacinas deformadoras. E aquele eterno maniqueísmo do qual o ser humano não se livra e com o qual nunca aprende com seus próprios erros. Onde não existem solidariedade, tolerância, sabedoria e amor, o egoísmo, o preconceito, a ignorância e ódio ditam as regras. E as maravilhas tecnológicas que surgem a cada ano, ao invés de um basta, potencializam tudo isso.

 

 

Trecho de sonhos tropicais

 

“(O poeta pergunta ao mosquito:) – É verdade que são vocês os transmissores da febre amarela? – Sei lá se transmitimos alguma coisa! Neste ponto estamos nas mesmas condições dos homens: não sabemos o que viemos fazer nesta vida... Nós somos inextermináveis. Mais ou menos como os chins (chineses). Até Olavo Bilac, o suave poeta parnasiano, que ocupou tanto cargos públicos, ironiza. O que deve estar dizendo então o Zé Povo, o cidadão anônimo que nas ruas do Rio de Janeiro comenta os acontecimentos?

 

– O Oswaldo Cuba – era Cruz, virou Cuba, porque só fala nos trabalhos feitos em Havana sobre a febre amarela – o Oswaldo Cuba, eu dizia, está gastando cinco mil contos para combater o mosquito.

- O mosquito? Mas o mosquito tem alguma coisa a ver com a febre amarela?

- O Soneca (presidente Rodrigues Alves) ficou apavorado: homem, eu tenho visto matar bicho muito mais baratinho.

 

- Mas não com essas brigadas de mata-mosquito das quais o Oswaldo é general.

- Será que o mosquito é assim tal mau?

- Suga nosso sangue...

- Não é o único. Os impostos, os empréstimos que temos de pagar aos estrangeiros.

- Pelo menos o mosquito é brasileiro. Já estava até aqui antes de os portugueses chegarem...”

 

 


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