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AS DORES DA ALMA

Em seu segundo romance, a escritora mineira Carla Madeira faz uma ode à literatura e volta a surpreender com personagens marcantes, que destilam a angústia existencial como catarse da vida


postado em 15/03/2019 05:07



“A alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões (…) Não sou uma pessoa caridosa, é uma constatação horrível, Olívia. A idade deveria ter me melhorado, mas só sei sentir as dores alheias mais sofisticadas. Traumas edipianos, pulsões de morte, fobias histéricas, obsessões, ideias delirantes. Fome? Frio? É básico demais. A aflição de uma mãe na porta da padaria que não tem o que dar de comer a um filho me azeda mais do que comove na direção de ajudá-la. Para que teve filho, então, se não consegue alimentá-lo? E essa pergunta bruta se volta contra mim: por que tive eu uma filha, se não consigo alimentá-la?. Vejo projetada sob todo o meu ser a sombra dolorosa da realidade daquela mulher maltrapilha, que, mais forte do que eu, tem pelo menos a coragem de pedir ajuda. São as ferroadas da incoerência. Há muito tempo minha filha não me cobra mais nada com palavras, só com distâncias.”

Assim, Biá, uma das protagonistas de A natureza da mordida, segundo livro da jornalista e publicitária de BH Carla Madeira, faz um desabafo sobre suas contradições para a amiga Olívia. O livro, uma longa declaração de amor à literatura, narra o encontro de Biá, psicanalista já no fim da vida, que carrega na alma as dores existenciais do mundo, desiludida pela perda do amor do marido e pela dificuldade de conviver com a filha, e a “desconcertantemente linda” e jovem Olívia, de cabelo ruivo e olhos verdes, também ressentida pela perda de uma grande amor. Amigas circunstanciais, elas se encontram frequentemente em uma banca de revista que abriga um sebo para trocar suas tristezas e dores. E nesses dramas as duas  vão tecendo suas teias de dissabores.

Se em seu primeiro livro, Tudo é rio, que retrata um triângulo amoroso cruel envolvendo Lucy e Dalva, duas mulheres extremamente fortes, cada uma à sua maneira, e Venâncio, um homem desajustado, Carla apresenta o sofrimento visceral, físico e violento, que extravasa sangue, em Na natureza da mordida ela transmuta o sofrimento físico em angústia existencial. Olívia é aprendiz e bebe na fonte de dores de Biá, uma mulher culta, já desgostosa da existência e em acelerado processo de demência. Quando diz “a alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões”, referência a Os miseráveis, de Victor Hugo, Biá parece mostrar que não há mais salvação. Mas, entre idas e vindas, em outro encontro com a amiga, ela admite a esperança: “É bonito ter uma história triste. A alegria é quase sempre barulhenta, quente, escancarada. A dor não. A dor tem um silêncio qualquer e nele nos reconhecemos uns aos outros. Sua história dói em mim, a minha doerá em você e enquanto isso acontecer podemos ter esperança. Caso contrário, seria o deserto absoluto”.

FONTES UNIVERSAIS

Aí está o recado de Carla com sua triste, bela e poética obra: o sofrimento não precisa ser irremediável, pode ser uma catarse da angústia existencial. Assim é em Tudo é rio e parece ser em A natureza da mordida. Os dois livros são uma grata surpresa para quem ama filosofia e literatura, para quem evolui enquanto sofre as tristezas insolúveis da vida que só a morte pode apagar. Ou não. Afinal, diz Biá em outro encontro com Olívia: “Tenho pensado muito na morte, inevitável diante do tempo corrido. Morrer nos tira tudo, ou tudo nos devolve”. A escritora mineira bebeu nas melhores fontes da literatura para construir seus enredos. Ao longo da narrativa, Biá, em suas considerações existenciais, destila vivências e filosofia de autores diversos, todos listados no fim do livro, como Victor Hugo, Clarice Lispector, Paulo Leminski, Vinícius de Moraes, Ítalo Calvino, Aníbal Machado, Liev Tólstoi, Charles Baudelaire, Adélia Prado, James Joyce, Jean-Paul Sartre, William Shakespeare, Gabriel García Márquez, Manuel Bandeira, Dostoiévski, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa. Todos com sua grandeza diante dos dilemas da existência.

E não é um defeito, apenas incompletude, não constarem nessa lista de sofrências de Carla dois mestres do existencialismo: Arthur Schopenhauer, não por acaso autor de As dores do mundo: “As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta”. E também: “Quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre”. O outro é o poeta maior, Fernando Pessoa, e seu inquietante Livro do desassossego: “A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa, mesmo com o que devia esperar”. Assim, entre doces lembranças e amargas saudades, Carla Madeira ensina: “A consciência traz a imensa dor da nossa condição. Ela nos obriga a uma busca inglória de algum significado para a vida”.


A NATUREZA DA MORDIDA
Carla Madeira
Editora Quixote+Do
265 páginas
R$ 52,90


TRECHO DO LIVRO

“A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca que passa manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar língua enquanto giramos estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas (…) Sou o espetáculo da loucura que quero ver nas caras chocadas. Antes de ser louca, eu queria a liberdade, essa irmã torta da loucura. Perdi o freio, por isso sou louca (…) Mas saiba que dói quando a loucura passa. O intervalo da loucura é a verdadeira tortura. A lucidez é uma jaula. Biá é meu nome de louca.”


Entrevista

CARLA MADEIRA
Escritora, jornalista e publicitária

A protagonista Biá se diz uma “avestruz deprimida”, estudiosa de literatura e psicanálise. Ela afirma que sem sofrimento não há literatura. A literatura e o sofrimento existencial seriam uma catarse da vida?

A literatura é uma potente experiência de simulação. Nós nos colocamos no lugar do outro e, ao viver afetivamente a tragédia de alguém, organizamos nossa própria tragédia. Nesta perspectiva, é sim uma catarse, uma espécie de enfrentamento dos nossos medos, das nossas perturbações. Escrever e ler é expurgar, deixar vir à tona, pôr para fora e abrir espaço para reler e ressignificar a própria existência. Quando comecei a escrever Tudo é rio, escrevi a cena de Venâncio com o filho recém-nascido e isso me paralisou por 14 anos. Quando voltei ao livro, eliminei toda a história anterior a essa cena e comecei por ela. Se aquilo me afetou tanto, era ali que eu precisava mergulhar. Desconfio que a matéria-prima do autor sempre será o que o afeta ou afetou. Por isso o sofrimento pode ser tão inspirador.

Biá faz citações de diversos autores, que são listadas no fim do livro. O acúmulo de conhecimento gera angústia existencial por levar à compreensão das dores do mundo?

Não é à toa que o fruto da árvore do conhecimento nos expulsou do paraíso e nos colocou a possibilidade dos infernos. A consciência traz a imensa dor da nossa condição. Ela nos obriga a uma busca inglória de algum significado para a vida, mesmo sabendo que estamos à deriva e no final da história morreremos... Não é fácil, né? Mas como bem disse Hannah Arendt: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”.

Depois de escrever Tudo é rio e A natureza da mordida, obras permeadas pelo sofrimento, fica a pergunta para a escritora, jornalista e publicitária: escrever dói?

Escrever é intenso. Há sofrimento no processo, há sofrimento na empatia com os personagens, mas há sobretudo a delícia de uma entrega. A propósito, este é um bom sentido que podemos dar à vida: entregar-nos ao que nos rouba os sentidos.


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