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Estado de Minas

'M, o filho do século' reconstitui o violento processo de articulação e construção do fascismo

Afinal, quem são os fascistas? Eis a pergunta considerada "errada", "ociosa", "inútil", "supérflua" e "até mesmo nociva" por Benito Mussolini, seu idealizador


postado em 14/02/2020 06:00 / atualizado em 14/02/2020 08:50


Anunciavam-se como o antipartido. Pregavam a antipolítica. A complexa realidade era reduzida à simplicidade monotemática: os socialistas eram a encarnação do mal, não deviam ser temidos, mas eliminados. Espancados. Mortos. A violência e o assassinato tornaram-se moeda corrente para o desaparecimento não apenas de adversários políticos, mas também de ex-apoiadores, ao estilo “quem trai morre”. Espalhar o pânico. Impor o “consenso” pelo terror. Com esse fim agiam os camisas-negras. Benito Mussolini considerava indispensável o esquadrão secreto que abatia os inimigos e velhos aliados do fascismo. A organização clandestina foi batizada de “Tcheka Fascista” – referência à polícia secreta soviética – por proposição de Amerigo Dùmini, integrante das milícias da morte, que em várias missões perseguira e eliminara antifascistas que haviam fugido para a França. O Duce aceitou a proposta de bom grado.
Primavera de 1919. Tenebroso período de entreguerras na Itália: desemprego, pobreza, fome, hiperinflação. Perambulam pela Itália hordas de deserdados da guerra, menosprezadas, ressentidas e armadas. Eis o contexto em que nascem os “fascio”. E o seu líder, Benito Mussolini, não liderava as massas. Preferia segui-las, explorando os seus medos, os seus ódios, as suas frustrações e os seus ressentimentos. A oratória sempre fôra convincente. Nesta que foi a data que marca o início da ascensão do fascismo na Itália, avaliava o ditador: “Metralhamos as ideias que não temos e então voltamos a cair no mutismo. Somos como fantasmas de insepultos que deixaram a palavra entre as pessoas na retaguarda”. 

Mussolini disseca com desprezo o público ao qual se dirige: “Por que devo falar a esses homens?! Por causa deles, os fatos superaram todas as teorias. É gente que toma a vida de assalto como um comando. Tenho à minha frente apenas a trincheira, a borra dos dias, a área dos combatentes, a arena dos loucos, o sulco dos campos arados com tiros de canhão, os facínoras, os deslocados, os delinquentes, os genialoides, os ociosos, os playboys pequeno-burgueses, os esquizofrênicos, os negligenciados (…) uma boemia política de veteranos, homens hábeis no manejo de armas de fogo ou cortantes, aqueles que se redescobriram violentos em face da normalidade do retorno, os fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias, os sobreviventes que, acreditando ser heróis consagrados à morte, confundem uma sífilis mal curada com um sinal do destino”.

Afinal, quem são os fascistas? Eis a pergunta considerada “errada”, “ociosa”, “inútil”, “supérflua” e “até mesmo nociva” por Benito Mussolini, seu idealizador. A razão é simples: a indagação supervaloriza a importância da consciência. “Sim, é claro... são algo novo... algo inédito... um antipartido. É isso... os fascistas são um antipartido! Fazem antipolítica. Muito bem. Mas, depois, a busca da identidade deve parar por aí. O importante é ser algo que permita evitar os empecilhos da coerência, o estorvo dos princípios. Benito deixa de bom grado as teorias, e sua consequente paralisia, para os socialistas”, define Antonio Scurati, autor de M, o filho do século, lançamento da Editora Intrínseca. Professor de literatura contemporânea em Milão, Scurati nasceu em Nápoles, em 1969, e é colunista do jornal La Stampa.

Vencedor do Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana, que traduzido em 40 países já vendeu mais de 400 mil cópias, M, o filho do século é definido pelo autor como “uma lição antifascista disfarçada de romance”. É o primeiro de uma trilogia ainda em produção, que relata a ascensão do fascismo na Itália no período compreendido entre 1919 e 1924. O livro foi dividido em seis partes, uma para cada ano do período. Inicia-se com a fundação dos Fasci di Combattimento (Grupos Italianos de Combate), em Milão, em 23 de março de 1919. Trata-se de organização paramilitar que viria a se tornar o Partido Nacional Fascista. Em tom intimista, de um diário, quem narra é Benito Mussolini: “Aproximamo-nos da Piazza San Sepolcro. Cerca de cem pessoas, todos homens sem importância alguma. Somos poucos e estamos mortos. Esperam que eu fale, mas nada tenho a dizer”. Mussolini tem a clara dimensão de que a história se constrói com pessoas comuns, face ao consentimento ou à ignorância também de outras pessoas comuns.

O futuro ditador tem avaliação do contexto social e político europeu, que não deixa dúvidas do papel que, acredita, ocupará na história da Itália. “Lá embaixo, na rua, os gritos dos aprendizes invocam a revolução. Nós rimos. Já a fizemos. Empurramos aos chutes este país para a guerra, em 10 de maio de 1915. Agora, todos nos dizem que esta terminou. Mas nós continuamos a rir. A guerra somos nós. O futuro nos pertence. Não adiante, não há nada a ser feito, eu sou como os animais: sinto o tempo por vir.”

Em formato de um diário, a história é contada sob a perspectiva de Mussolini e de outras personagens da trama que participaram da consolidação do regime totalitário: Gabriele D'Annunzio, poeta e primeiro soldado, autor de Vitória mutilada; Amerigo Dùmini, mutilado na guerra e condecorado por bravura, um dos fundadores do Fascio di Combattimento de Florença e líder dos camisas-negras; Italo Balbo, filho da pequena burguesia urbana, voluntário de guerra, financiado por proprietários rurais, adere às esquadras fascistas e comanda o massacre de sindicalistas e dos apoiadores de camponeses em sua luta por melhores salários.

Juramento da amante

No plano pessoal e familiar, entre parentes e amigos citados na obra, a mentora intelectual de Mussolini e sua amante desde 1914, Margherita Sarfatti, também vai apresentar a sua narrativa da história. Em carta ao amante e já empossado Duce, Sarfatti discorre nas primeiras horas da virada de 1923: “Eu também sou da sua milícia; evidente e secreta. E fiz um juramento a você, ratifiquei o juramento, como sua amiga, sua mulher, sua esposa (…) com fidelidade absoluta e devoção de partidária, de italiana, de cidadã, de mãe e de amante (...) Estou orgulhosa de você até o fanatismo e até a loucura, mas pelo seu valor intrínseco, e não pelo fetichismo que a multidão alimenta em relação a você”.

Também adversários do fascismo, como o deputado socialista Giacomo Matteotti, deixam o seu olhar nessa narrativa. Antonio Scurati descreve, pela voz de Matteotti, os dilemas da oposição face à proximidade das eleições e a derrota iminente. A esquerda está isolada. Liberais, democratas e tantos moderados ou se omitem ou ingressam nas listas de Mussolini em busca da reeleição. Alguns se omitem face à violência e os passos da Itália para a consolidação do Estado totalitário, sob o argumento de que é melhor Mussolini do que os socialistas. Matteotti, que acabara de publicar o livro Un anno di dominazione fascista, apresenta detalhada lista das “surras, os incêndios e os assassinatos”, às centenas, aos milhares. Todos cometidos pelas milícias fascistas.

Antonio Scurati fala desse deputado combativo, logo ele, que terá tenebroso fim, trucidado pelos camisas-negras: “Mas o livro em que Matteotti trabalhou por tantos meses, consumindo-se na vertigem da lista, mal é publicado e já está desatualizado. Suas páginas minuciosas haviam acabado de deixar a tipografia quando chegou a notícia de que, em Reggio Emilia, foi assassinado o candidato socialista Antonio Piccinini, também ele tipógrafo de profissão. Penduraram seu corpo em um gancho de açougue. É assim: a história da tragédia humana é um editor faminto. Você acaba de publicar o volume completo e ele já exige que se acrescente um novo capítulo sobre o último delito que acabou de ser noticiado. Mas Giacomo Matteotti, como de costume, não desiste. Em fevereiro, publicou a primeira edição da sua enésima denúncia; em março, já trabalha na reedição”.

A obra de Scurati trabalha, assim, a cada ano, o processo de articulação e construção do regime totalitário, perseguido implacavelmente por Mussolini, assim sintetizado em 28 de outubro de 1923, aniversário de um ano da marcha sobre Roma: “Nós duraremos porque não eliminamos a vontade da história, nós duraremos porque desbarataremos sistematicamente nossos inimigos, nós duraremos porque queremos durar”.

Oposição silenciada

O primeiro volume desta obra-prima, assentada em amplo acervo documental, se encerra em 3 de janeiro de 1925, com a narrativa das acusações que pesam sobre Mussolini e os fascistas de terem criado uma Tcheka (a milícia paramilitar dos camisas-negras) responsável, entre tantos outros, também pelo assassinato de Giacomo Matteotti. O Duce vai se defender perante o Parlamento da Itália. Aterrorizada pelo circo de mortes e horrores, a oposição fascista se cala. Mussolini se esbalda: “Assim sua voz se ergue, potente, no plenário de Montecitório, metralhando uma sílaba após a outra. Disseram que ele teria fundado uma Tcheka. Onde? Quando? De que maneira? Ninguém poderia dizer. Se ninguém o culpa, ele, então, exonera-se: ele sempre afirmou ser discípulo daquela violência que não pode ser expulsa da história, mas ele é corajoso, inteligente, visionário, a violência dos assassinos de Matteotti é covarde, estúpida, cega. Que não cometam a injustiça de considerá-lo tão cretino!”.

Ninguém se levanta para deter o filho do século, assinala Antonio Scurati. A sessão termina sem discussão nem voto. Encerradas as clamações fascistas, o plenário se esvazia. Com Mussolini, a leitura dos fatos: “Justifiquei-me perante a história, mas devo admitir: é comovente a cegueira da vida em relação a si mesma. No fim, retorna-se ao início. Ninguém queria pôr nas costas a cruz do poder. Pego-a eu”. Assim, sob a perspectiva do ditador, Scurati encerra o primeiro volume da trilogia.

PARA ENTENDER

A Primeira Guerra Mundial: Itália adere ao conflito

No início do século 20, a Itália era uma potência imperialista de segunda classe. Aderiu à Primeira Guerra Mundial como aliada de franceses e britânicos, que formaram com o Império Russo a Tríplice Entente. Aos italianos, havia a promessa de futuras compensações financeiras e territoriais estabelecidas pelo Tratado de Londres, assinado em 1915. Pelo acordo, a Itália receberia áreas habitadas por italianos em território austro-húngaro. A Itália aderiu à guerra em 24 de maio de 1915, 10 meses após o início do conflito. Embora o seu esforço militar não tenha atingido a mesma intensidade de outras potências, mobilizou mais de 5 milhões de soldados. Um total de 560 mil soldados morreram e a Itália foi, entre as demais potências europeias, aquela que mais perdeu soldados por doenças, e estima-se que 50 mil mortes ocorreram em campos de prisioneiros na Alemanha e na Áustria-Hungria.

A participação e a “Vitória Mutilada”

Desastrosa durante grande parte da guerra, a participação italiana foi importante ao derrotar e forçar o Império Austro-Húngaro à capitulação na Batalha de Vittorio Veneto. Foi um revés do Império Alemão, que passaria a lutar sozinho na guerra. Mas tão logo encerrada a guerra, produziu-se um descontentamento generalizado, principalmente entre combatentes, pois o espólio de guerra legado à Itália foi muito aquém das expectativas, sintetizado pelo poeta Gabriele D'Annunzio em poema sobre a "vitória mutilada" e a humilhação sofrida por toda uma geração de jovens combatentes. As associações de veteranos de guerra, além da construção de forte sentimento de comunidade, exigiam mais espaço político e reconhecimento pelos sacrifícios que a experiência de violência e brutalidade de uma guerra tinham representado. Além dos mortos, a estimativa foi de 1 milhão de feridos.

O contexto do pós-guerra

No pós-guerra, o governo italiano se viu impotente para solucionar a crise econômica, o desemprego, a fome, a falta de oportunidades a uma população, principalmente de combatentes, colocando em xeque os valores liberais de liberdade individual, política, religiosa, econômica. Simultaneamente ao quadro de desalento econômico, os conflitos sociais recrudesceram e, assim como mundo afora, a reboque da Revolução Bolchevique, uma série de movimentos de esquerda eclodem na Itália, com o fortalecimento dos sindicatos. O movimento operário já havia se cindido entre socialistas ou social-democratas (marxistas que haviam abandonado o tema de luta armada e aderiram à prática político-partidária do liberalismo) e comunistas (formados por frações que se destacaram do movimento operário seguindo os métodos bolchevistas vitoriosos na Rússia). O pessimismo contaminou os intelectuais de classe média e se manifestou principalmente na apologia da antipolítica, do antiparlamentarismo, o irracionalismo, o nacionalismo agressivo e a proposta de soluções violentas e totalitárias para solucionar os problemas da crise.

Os “inimigos” da nação e os camisas-negras

Ao eleger o antiesquerdismo e o antissocialismo como “culpados” por todas as mazelas da Itália, o fascismo, com amplo emprego da violência aplicada contra líderes de esquerda, destruiu em pouco menos de dois anos a estrutura institucional do socialismo italiano. Para isso, teve o apoio dos proprietários de terras, já que o odiado sindicalismo rural era aniquilado fisicamente pelos camisas-negras. Nos seis primeiros meses de 1921, os fascistas haviam destruído 119 Câmaras do Trabalho, 59 Casas del Popolo, 107 cooperativas, 83 escritórios de ligas da terra, gráficas socialistas, bibliotecas públicas e sociedades de ajuda mútua. Entre fevereiro e maio de 1921, dirigentes socialistas foram espancados nas eleições gerais e, em alguns casos, assassinados. Os camisas-negras foram se espalhando na Itália, principalmente onde os socialistas eram mais fortes. Benito Mussolini e os seus métodos pareciam, aos olhos das elites e do rei, assustados com o comunismo, mais eficientes para a defesa da propriedade privada, uma política externa nacionalista e a realização de obras públicas para fomentar a economia.

O Duce

Benito Mussolini ascendeu ao posto de primeiro-ministro após alcançar grande popularidade com o discurso virulento contra a esquerda e a violência praticada contra os seus adversários políticos. Em 1922, organizou a Marcha sobre Roma, manifestação fascista, sobretudo um golpe de propaganda, com o afluxo na capital de dezenas de milhares de militantes fascistas, que tomaram as ruas da capital italiana exigindo que o rei Vitor Emanuel III passasse o poder para as mãos do Partido Nacional Fascista. Pressionada, a autoridade real chamou Benito Mussolini para compor o governo. Se a nova posição não foi recebida com o mesmo entusiasmo dos nacionalistas e da direita em geral, que, naquele momento, comungavam de projetos aparentados com o fascismo, recebeu a adesão implícita dos liberais, seja por omissão deliberada, seja por engajamento escancarado: “Antes Mussolini do que a esquerda”.

Uma vez no poder, Mussolini iniciou seu projeto da Itália fascista: concentrou todos os poderes administrativos; silenciou a oposição que ainda resistiu, perseguindo sindicalistas, socialistas, intelectuais e qualquer voz dissidente, inclusive ex-apoiadores. Entre 1925 e 1927, desmantelou todas as proteções constitucionais que garantiam a liberdade de expressão e de associação, instituindo um Estado policial. Implementou um intenso programa de culto à personalidade, colocando-se, na condição de Duce (líder), como a figura central da nação. Partidos políticos foram suspensos nesse período e uma nova lei eleitoral aboliu as eleições parlamentares.

M, O Filho do Século

De Antonio Scurati
Tradução de Marcello Lino
Intrínseca
816 páginas
R$ 79,90


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