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A irmandade do crime


postado em 26/10/2018 05:04

(foto: JOÃO MOURA/DIVULGAÇÃO)
(foto: JOÃO MOURA/DIVULGAÇÃO)


Em Irmãos, o sociólogo Gabriel Feltran oferece uma visão do PCC a partir de sua experiência no dia a dia das comunidades pobres de São Paulo. O livro é “uma etnografia pioneira que traz compreensão original da violência no Brasil”, afirma o sociólogo Mitchell Duneier, professor da Universidade de Princeton (EUA).

Feltran ajuda a compreender como e por que a “ideologia PCC” se impôs nas periferias e compara os métodos da organização àqueles usados pela maçonaria. De acordo com ele, as estratégias do Comando tiveram reflexo sobre os índices de violência em São Paulo. Nos anos 1990, a taxa de homicídios paulista era de 35 assassinatos para 100 mil habitantes; em 2010, ela caiu para 7,8 por 100 mil cidadãos.

As regras do “proceder” impostas pelo PCC proíbem o “acerto de contas”, por exemplo. Essas normas são respeitadas: ladrões são proibidos de roubar moradores, não se admitem estupros e pedofilia. Assassinatos dentro da comunidade são “julgados” pelo PCC. Outro fator, de acordo com Feltran, foi o tabelamento da venda de drogas nas “biqueiras”, evitando conflitos por pontos de distribuição.

Irmãos chama a atenção para aspectos subjetivos da “ideologia PCC”, que estimula os sentimentos de pertencimento e proteção às comunidades pobres. O símbolo da facção é o yin-yang. Essa expressão oriental do dualismo, da combinação de forças opostas, sintetiza “o lado certo da vida errada”.

Você compara o PCC à maçonaria. Por quê?

Porque é assim que funciona na prática. Ao contrário do que se pensa, não há um poderoso chefão, como se a facção fosse uma empresa ou uma estrutura de domínio territorial do tipo militar. Há uma fraternidade entre ladrões, traficantes, pessoas que têm diferentes posições no mundo do crime. O fato de um deles ter negócios no tráfico, por exemplo, e ter funcionários no tráfico não o faz patrão de outros irmãos da facção. Assim como um empresário de negócios legais é patrão na sua empresa, mas não quando entra na loja maçônica. Ali, ele é um irmão e deve ajudar os outros irmãos.

O que diferencia o PCC das outras organizações criminosas? Ele é mais eficiente do que Comando Vermelho, ADA e grupos do Norte e Nordeste?

O que o diferencia é justamente essa estrutura de fraternidade, de irmandade do crime. Isso é diferente das facções que você cita e favorece muito sua expansão. Se para as outras facções é necessário conquistar territórios para crescer, muitas vezes militarmente, para o PCC basta convencer outros grupos a colaborarem entre si. Nem sempre é fácil e, por vezes há guerras sangrentas nesse processo. Mas é mais fácil, a longo prazo, obter sucesso.

Muito se tem discutido sobre a crise no Brasil – a credibilidade de Executivo, Judiciário e Legislativo sofreu forte abalo. Podemos dizer que, paralelamente a esse desgaste institucional, a organização PCC vai se fortalecendo?

Sem dúvida, mas esse abalo é dos últimos anos e o PCC cresce há 25 anos. Além disso, a descrença nas instituições, cada vez mais forte entre classes médias e elites, é um dado empírico entre os pobres há muito mais tempo. “Nós por nós”, expressão muito utilizada nas periferias, indica essa autonomização da forma de ver a vida frente a um mundo institucional concebido como injusto e insensível às demandas dos mais pobres. Não que os pobres não se interessem pelo que acontece nas instituições. Eles o fazem. Mas não creem que é só dali que se podem encontrar saídas. Há outras possibilidades para parte desses trabalhadores, como investir nas igrejas, na informalidade, nas virações cotidianas e mesmo no mundo do crime.

Você fez pesquisa de campo por vários anos. Mostra que o PCC é mediador nas periferias e até na Vila Mariana, ponto nobre de São Paulo. A facção “resolve” diferenças entre vizinhos, põe certa ordem junto a adolescentes, é procurada por mães aflitas. Também mantém “tribunais” para julgar casos mais graves – inclusive, com pena de morte. O PCC tem legitimidade junto ao povo? Ou é apenas temido?

Atualmente, isso depende de lugar para lugar. Cada quebrada é uma, e o Brasil é imenso. O PCC segue tendo muita legitimidade no mundo do crime e tem hegemonia em São Paulo. Mas é importante notar: do ponto de vista de quem tem um problema, importa mais resolver o problema, e não quem ajuda a resolvê-lo. Os pobres sempre tiveram esse pragmatismo, pois sempre tiveram problemas mais sérios para resolver e menos alternativas a buscar. Se a solução vem da direita ou da esquerda, do branco ou do preto, do trabalhador ou do bandido, da Igreja ou do Estado, talvez importe menos para quem está desesperado por uma saída do que para quem pode escolher.

Autoridades negam, mas aponta-se que a queda de índices de homicídios em SP se deve mais à ação do PCC nas periferias – proibindo matanças entre gangues e impedindo a guerra por pontos – do que a políticas públicas de segurança. Você defende essa tese. Por quê?

Sou um desses, dessa multidão, que sabem que as políticas produzidas pelo PCC em São Paulo estiveram diretamente relacionadas à queda de 70% dos homicídios no estado durante os anos 2000. Multidão das periferias, de quem vive perto dos que são mortos, dos que sabem o que acontece em torno de cada homicídio nas periferias. O homicídio não caiu nas regiões abastadas, nem caiu o latrocínio, nem os mortos pela polícia. Caiu drasticamente o “acerto de contas” entre bandidos, porque entre eles se instituiu uma nova lógica de gestão da ordem e da justiça, no ritmo do PCC, a partir dos anos 2000. Escrevi sobre isso entre 2010 e 2012, mas em ano eleitoral sempre esse assunto retorna à baila.

A sociedade brasileira e os representantes do Estado têm percebido de forma correta o PCC? Há equívocos nessa percepção?

Em geral, a imprensa, as forças policiais e o sistema de Justiça têm muitas evidências da presença e da operação do PCC, mas não entendem o esquema geral de funcionamento da facção. Por isso, fazem transferências, isolamento de supostas lideranças ou mesmo prisões de uma ou outra empresa criminal, considerando que estão atacando a facção, não aqueles bandidos especificamente. Assim, acabam sendo instrumentalizados pelo PCC para continuar crescendo. Essas punições são eficazes contra as pessoas, os grupos específicos, mas não contra a facção em geral. Quanto mais se prende, mais as facções se fortalecem.

Em São Paulo, o PCC impõe regras de “proceder”. Mas outros locais não as aceitam. Houve violentíssimas rebeliões em presídios do Norte e Nordeste, com a execução de integrantes da facção. A expansão do PCC pode pôr fim ao próprio PCC?

A forma de se organizar, de pensar a organização, deve ser a mesma em todos os estados. Mas cada lugar é um lugar, e o que as negociações locais enfrentam em cada lugar é totalmente diferente. De fato, em muitos estados o PCC não é visto por grupos locais como um ordenador legítimo, e isso pode provocar guerras, rupturas no mundo do crime. Olhando para o quadro geral, entretanto, o PCC é hoje muito mais presente nesses estados do que antes, e sua lógica de expansão parece capaz de obter mais aliados locais. Acho que a expansão fortalece o PCC, ainda que não implique hegemonia no mundo do crime em muitos estados.

Quais são as consequências do racha entre o PCC e o Comando Vermelho carioca?

As consequências são vistas no Norte do Brasil, em Fortaleza, em Minas Gerais. A guerra ou a paz entre facções é um dos três fatores fundamentais da explicação das oscilações rápidas que vemos nas taxas de homicídios, em diversas regiões do país. Os outros dois são a dinâmica dos mercados ilegais, sua maior ou menor pujança, suas características em cada lugar; e as políticas de segurança, que insistem em prender os pequenos operadores desses mercados, levando-os para faculdades criminais, as cadeias. E pior, jogando mais gente no mundo do crime, na medida em que o posto que um menino ocupava no mercado ilegal vai ser ocupado por um outro menino, que se iniciará no crime.

O que deveria ser feito para combater a ação do PCC e demais facções que atuam no país?

Seria preciso revisar, com responsabilidade, o nosso modelo de segurança pública. No modelo, deve ser privilegiada a regulação dos mercados ilegais, de drogas, armas, veículos furtados, etc. Não a punição dos pequenos operadores desses mercados, que lotam as cadeias e produzem mais gelo a ser enxugado em seguida. Esses mercados hoje crescem sem qualquer freio, produzindo uma espiral de postos de trabalho no mundo do crime. Uma espiral de violência cotidiana, por vezes letal. Em segundo lugar, deve ser ofertada justiça todos, esclarecendo homicídios, punindo quando necessário, demonstrando que o Estado trata a todos como cidadãos. Mas, antes de tudo, é preciso conhecer, entender o que está acontecendo no universo criminal. Nem isso fizemos ainda.


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