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Estado de Minas Chuvas

Dia fora do padrão


20/10/2021 04:00

Andreia Donadon Leal
Belo Horizonte

"Chove torrencialmente, de manhã, de tarde e de noite. Tempo de chuvas, outubro, novembro e dezembro trazem águas fartas do céu. Abro o compartimento da varanda. Gotas esparsas, gotas generosas caem sem parar. Água bate no chão, escorre pelas calhas de alumínio, bate nas calçadas, escorrendo pelas ruas... Barulho de chuva amaina e nina meus sonos. Barulho de máquina de cortar azulejos inferniza minhas tardes produtivas. Pássaros procuram abrigos nas aberturas dos telhados. Ninhos de filhotes caem do telhado. Vento puxa, arrasta corpos que nem abriram os olhos. Pássaro-mãe canta seus males e desencantos. Faço parte da breve cerimônia fúnebre. Menino chuta uma poça d'água; passa correndo e vibrando com as gotas que caem do céu. Tempos de infância que se reverberam em gritos e molecagens de outrora. Já chutei pingos de chuva e lufos de vento. Meus tempos de infância? Perderam-se, talvez retornem no final da vida. Enquanto o tempo passa, a chuva vai invadindo moradias. Águas barrentas arrastam e arrasam casas. Uma família pede socorro na rede social; um menino sobe na mesa, pais tiram baldes de lama dos cômodos e da rua. Perderam tudo! De Minas a Minas, de Brasil a Brasil, enchentes castigam famílias inteiras. Alguém grita: 'Que ódio do homem!'. 'Que ódio da chuva!', 'que ódio da vida!'. Não sei de onde vem a lamúria. Saio de casa; água de chuva bate em meus braços e pernas. Entro no supermercado, compro cestas básicas... Quisera comprar metade do supermercado. O guarda-chapéu não tampa corpo inteiro. Compro capa de chuva. Quiçá esteja mais protegida das gotas geladas. Bocas de lobo entupidas liberam lixos, água, lama e mau cheiro. Jogaram lixo nas encostas, nos bueiros, nos buracos, nos asfaltos. Chove: inundação. Faz calor: fogo na mata. Meu coração: descompasso. Tenho medo da chuva torrencial. Tenho medo de relâmpagos e dos trovões. Tenho medo das águas invadirem mais casas, levando projetos e sacrifícios. Casa própria, casa financiada, casa alugada, casa reformada, barracão, casebre, palhoça, casa com telhado de lona, casa sem forro: inundadas. Um punhado de gente foi filmada catando restos de comida no caminhão de lixo. Que imagem desoladora! Quantas pessoas sofrem penúria e miséria? É inadmissível a fome! A fome é inadmissível! Recordo-me dos meus tempos de escola: não sei qual programa de governo dava merenda para famílias em situação de vulnerabilidade social. Não me lembro. Infelizmente ou desgraçadamente, tocam fogo em nosso dinheiro criando programas que irão ladeira abaixo, bueiro abaixo, goela abaixo do povo. É ministério que vai, é ministério a mais. É luxo para a cúpula do governo, é lixo para a população que mais pena e padece de miséria! Um menino me para na rua lamacenta, pede socorro, tiro a capa de chuva, coloco-a no corpo da criança. Sigo, no meio do caos da lama e da chuva, de mãos dadas com o menino, que chora copiosamente. Não sei o que falar, não sei o que lhe dizer. Foi ele quem gritou 'que ódio do homem, que ódio da vida'... Eu também tenho meus ódios, que vão ladeira abaixo, feito água da chuva em pedra dura. Escondo meu ódio, afago o menino. Mais chuva vem, mais caos prevejo. Minhas cestas são quase arrastadas pelas águas e pelo vento. A criança me confidencia que pediu para os anjos do céu darem uma casa de presente para sua família. 'Uma casa que não entra água, que não entra fogo, que não entra homem mau, que não entra mato, que não entra frio nem calor. Essa casa existe, não existe, dona? Ou existe só para quem tem muito dinheiro?' Nunca fui de me surpreender com falas e sonhos de crianças e adolescentes. Hoje foi um dia fora do padrão, fora de minha rota de compreensão. Foi um dia de ódio, daqueles que não têm palavras, daqueles que não têm afagos imediatos, nem mimimi de autoridade que justifique! Fui no ódio mesmo arrastando móveis, ajudando a tirar lama e água dos cômodos arrasados..."

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