Javert Rodrigues
Médico psiquiatra e psicanalista. Formado pela Faculdade de Medicina da UFMG, ex-presidente do Departamento de Psiquiatria da Associação Médica de MG, ex-presidente do Círculo Psicanalítico de MG e ex-diretor da International Federation of Psychoanalycs Societies
Com mais de 50 anos de experiência na clínica psiquiátrica e psicanalítica, não posso deixar de me manifestar diante de uma reportagem sobre "A batalha da psiquiatria", publicada no Jornal Estado de Minas de 1º de março de 2022, na qual se estabelece mais uma polaridade que se espalha por esse nosso mundo de hoje: agora, entre os defensores da internação hospitalar de casos graves e a linha antimanicomial.
Trata-se de um falso dilema e uma polarização ingênua que estabelece a doença mental como uma questão exclusivamente política. Não é, de forma alguma, uma questão partidária. É uma questão médico-social grave, pois ela é capaz de transtornar e provocar até mesmo tragédias.
A experiência clínica deve iluminar e reger as indicações terapêuticas de uma forma despida de preconceitos, amparada na ciência e na competência clínica do profissional médico, que conta, nos dias de hoje, com o avanço dos medicamentos para o tratamento de depressões, ansiedades e psicoses. Além disso, contamos com o auxílio indispensável das técnicas psicoterápicas que ampliam o horizonte de escuta e apreensão dos profissionais com apoio da psicanálise e outros campos de tratamento.
A psiquiatria é um ramo da medicina com uma complexidade enorme na abordagem dos transtornos mentais. Difere dos demais campos da medicina em que o médico tem uma função importantíssima de definir o diagnóstico, propor o tratamento e fazer o acompanhamento da evolução do caso. Hoje, a medicina conta com o auxílio de aparelhos e exames complementares que propiciam maior exatidão nos diagnósticos.
Por exemplo: diante de um quadro de pneumonia, o médico pode requisitar exames radiológicos, hematológicos e adequar o quadro do paciente num esquema de tratamento padronizado pelos protocolos estabelecidos. Muitos casos, entretanto, escapam à padronização dos tratamentos, exigindo a entrada em cena da experiência e competência do profissional médico para lidar com as exceções. Daí a importância na formação médica daquilo que popularmente se chama de “olho clínico” e iniciativa do médico para salvar seus pacientes quando o tratamento-padrão não surte efeitos.
A formação clínica do médico, também, não deve se restringir a uma abordagem padronizada, pois existem casos que se afastam dos quadros tidos como padrão e exigem outros recursos que vão além dos conhecimentos patológicos, farmacológicos e semióticos. Faz-se necessário um diferencial que inclui as questões psíquicas que acompanham toda e qualquer doença. O médico deve estar aberto para questionar e escutar outros colegas sempre que se depara com essas questões.
No caso específico das doenças mentais, nos deparamos com uma complexidade ainda maior devido à carência de métodos objetivos de diagnósticos, a inexistência de exames clínicos radiológicos ou laboratoriais que ofereçam uma comprovação diagnóstica. Por outro lado, existem diferentes correntes de abordagem e compreensão dos quadros psicopatológicos e de indicações terapêuticas. Trata-se de um campo muito mais complexo e sujeito a opções divergentes tanto entre os profissionais, como de familiares e do próprio paciente. Por exemplo, podemos nos deparar com psiquiatras que apoiam exclusivamente as terapias farmacológicas. Outros tendem a se apoiar nas técnicas psicoterápicas. Outros, ainda, utilizam a sonoterapia e outras técnicas. E, ainda, existem os que conciliam o tratamento híbrido que conjuga as vertentes psicofarmacológica e psicoterápica.
Do lado dos pacientes, seguimos a proposição de que “cada caso é um caso” e devem portanto serem tratados na singularidade de cada um.
Para concluir, compreendo que questões manicomiais sejam levadas em conta, pois a história nos mostra como a internação de pacientes nos hospitais psiquiátricos, no passado recente, foram usadas para os mais diversos fins, de forma irresponsável e em parceria com a suposta “ordem pública”, servindo para fins mais insanos que qualquer insanidade dos pacientes.
Como sempre, o abuso de qualquer atividade como essa, que contou com a cumplicidade dos próprios profissionais, levou a consequências duras e duradouras como a resistência e o repúdio às internações que ocorrem hoje. Este estigma perdura e deforma a assistência manicomial, que pode ser indicada em alguns casos específicos que colocam em risco a vida do próprio paciente, de seus familiares e das pessoas de uma maneira geral.
O advento da psicanálise e a adesão de uma parcela significativa dos psiquiatras a essa formação abriu, a meu ver, uma perspectiva mais civilizada, humana e eficiente no tratamento dos pacientes. A inclusão de um espaço para a fala e a escuta desses pacientes provou ter um efeito de borda às irrupções de suas crises, sem descartar a ação dos medicamentos, cada vez mais eficazes na contenção dos transtornos mentais.
