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Estado de Minas

Direito de ser infeliz


19/03/2021 04:00




Aleluia Heringer
Doutora em educação e diretora do Colégio Santo Agostinho

Uma escolaridade básica completa, iniciada aos 4 anos de idade e concluída aos 17, implica 14 anos da vida de um sujeito. Nesse intervalo de tempo, entram e saem de cena, com diferentes vozes, bagagens e jeito de ser, aproximadamente, 80 professores. Essa criança, até o final de sua adolescência, fará parte de agrupamentos com configurações distintas, tendo que, anualmente, fazer novas acomodações, recomeçar amizades e se deparar com novos problemas de convivência. Na escola, se sentirá forasteira em alguns momentos e, noutros, se sentirá plena ao encontrar seus pares ou grupos de interesses; se submeterá a regras coletivas de convivência, passará apertos, sentirá medo, vergonha, tristeza e, algumas vezes, vai desabar em choro quando chegar em casa.

Ao ler todas essas situações, poderíamos imaginar quanta infelicidade esse lugar proporciona. Contudo, é aí, na escola, que esse sujeito vai se conhecer, fortalecerá sua identidade, se tornará autônomo e viverá as primeiras emoções de gostar de alguém. Poderá ser bem ou malsucedido (nesse caso, sofrerá como se fosse o fim do mundo!).

Esse breve apanhado do cotidiano escolar, que todos nós um dia vivenciamos e que faz parte de nossa história e constituição, está sendo ameaçado pela assepsia rigorosa e de controle que, paulatinamente, instauramos na vida das crianças e jovens. Esse movimento que se refina com o passar dos anos, a ponto de termos, no horizonte, a eliminação da própria escola, me faz perguntar para onde estamos indo, intencionalmente ou não.

Aldous Huxley, em 1932, publicou o livro “Admirável mundo novo”, em que apresenta uma civilização futurista, onde tudo é controlado, desde a concepção da vida em laboratórios, a partir da ordem e da inexistência da tristeza e dissabores. Quem faz o estranhamento desse mundo é John, personagem não concebido no “centro de incubação”, daí sendo chamado de Selvagem. Por ter sido criado em uma reserva, John era “estudado” como algo bizarro. Num dado momento da obra, Mustafá Mond, o administrador dessa civilização, tenta convencer o selvagem sobre as vantagens daquela estrutura livre dos problemas e é contestado por ele com o seguinte argumento, retirado de uma citação de Hamlet: “É mais nobre para a alma sofrer os açoites do azar e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las?”. E continua, então, com uma crítica, ao dizer: “Os senhores não fazem nem uma coisa nem outra. Não sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais”. A conversa continua e, no final do diálogo, Mustafá diz: “O senhor reclama o direito de ser infeliz”, no que o selvagem responde: “Eu reclamo o direito de ser infeliz”, que, nesse contexto, significava conviver com diversos inconvenientes.

Volto então para a educação. A pandemia nos obrigou ao ensino remoto, que, mesmo sendo a única opção para o momento, também traz consigo cansaço, angústia e muita saudade da escola. Esse período é circunstancial e aguardamos com grande expectativa o dia em que poderemos retornar e nos abraçar. Não podemos confundir essa inquietante condição pela substituição definitiva do ambiente escolar, com tudo o que ele significa, pela educação domiciliar.

É bem provável que uma criança ou jovem, no contexto seguro, controlado e livre de todos os dissabores, com tutores e amigos escolhidos de acordo com a visão de mundo dos pais, aprenda matemática, geografia, história, inglês, natação, além de acalmar o coração de pais e mães. Estão certos! O que precisamos refletir é o quanto esse projeto de programar para ser feliz vai roubar da vida e das histórias que as crianças e jovens têm o direito de vivenciar. Nesse caso, faz todo sentido o direito de ser infeliz.


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