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Estado de Minas ARTIGO

Senso comum e ciência

É preciso, pois, senhores homens públicos, de todas as esferas, que parem de desrespeitar as premissas científicas


postado em 02/05/2020 04:00

(foto: QUINHO)
(foto: QUINHO)

Otacílio Lage
Jornalista

Nos meus tempos de criança no interior de Minas, um senhor era chamado sempre para limpar a chácara da nossa propriedade, com muitas bananeiras, árvores frutíferas e afins. Em toda jornada, que, às vezes, durava 10 ou mais dias, ele aparecia no terreiro da casa da propriedade para pedir um naco bem grande de rapadura, para combater mais uma picada de escorpião que levara. Para ele, o doce era o antídoto. Esse senso comum era bem difundido entre os trabalhadores braçais naquele cafundó – nunca soube da morte de algum deles por isso.

Mesmo nos dias de hoje, muitos jogadores, traquejados ou novos, fazem o sinal da cruz e quase sempre tocam depois o chão à beira do campo, para então pisar no gramado. Esse gesto pode não significar nada para muitos, mas para alguns vale tanto quanto um gol, com base na fé para ser feliz no jogo. Um senso comum de geração a geração.

A pandemia do coronavírus que ora o mundo enfrenta já causou 250 mil mortes no planeta; no Brasil, número de óbitos rompeu a barreira dos 5 mil, com mais de 80 em Minas (dados de 29/4). Mas há quem diga que a doença é "invenção dos chineses", uma "gripezinha" e que "basta" ter fé em Deus para enfrentar o mal.

O senso comum, pois, é um tipo de pensamento que não foi testado, verificado ou analisado cientificamente. Expressões comuns do cotidiano brasileiro: pronunciar o nome de Santa Bárbara em meio a uma tempestade com relâmpagos; comer manga e tomar leite faz mal; andar descalço em piso frio dá reumatismo; comer tarde da noite pode causar indigestão; calçar o pé esquerdo do sapato primeiro dá azar, principalmente numa sexta-feira 13. Conheço muitos que não entram em casa com o pé esquerdo, tampouco passam debaixo de escada. Portanto, o senso comum se materializa a partir de um movimento de repetição cultural, estando correto ou não. Mas como confiar nesse tipo de "conhecimento" em detrimento da ciência, como muita gente – inclusive homens públicos – está fazendo ante o coronavírus, embora a validade do senso comum quanto ao confinamento em casa tenha sua comprovação?

O senso comum é fruto, claro, da opinião, dada quase sempre em rodas de conversa, isso desde a Grécia Antiga. Mas advém da filosofia a maneira de contrapor esse conhecimento popular. Foi Antonio Gramsci, filósofo italiano, disseminador do anarquismo em seu país, quem primeiro estudou e escreveu sobre o senso comum. Ele o descreveu como positivo, reconhecendo como um conhecimento popular, mas ressaltando que, para se chegar a um conhecimento mais elaborado, estruturado e seguro, seria necessário ir bem além. Muitos estudiosos afirmam que o senso comum é um bom ponto de arrancada, mas também defendem a ciência para a obtenção de um conhecimento de maior confiança e validade. Ou seja, senso comum e ciência, mesmo se contrapondo em certas concepções, apresentam complementaridade entre si.

Para o pai do positivismo, o pensador francês Auguste Comte, essa doutrina reconhece apenas ciência como fonte de conhecimento verdadeiro. Essa concepção exclui, segundo ele, a filosofia, a qual teria cedido o seu lugar aos modelos científicos para a explicação da realidade. Nestes dias bicudos em que pululam declarações absurdas, como "a Terra é plana" e outras aberrações, é preciso, sim, prestigiar a ciência, sem menosprezar quem joga um pouco "para o santo de devoção" quando toma o primeiro gole de pinga numa bodega caipira ou no bar da cidade grande.

Volto à minha infância no interior de Minas. Uma senhora amiga da minha mãe ia sempre à nossa propriedade catar lenha para usar em casa. Certa vez, debaixo de uma moita, ao puxar um galho seco, uma cobra venenosa despencou da árvore e a picou na altura de um dos joelhos. Ela morreu, aos 89 anos, afirmando que, quando comia ovo, o local da picada doía muito. Durante 40 anos ela repetiu isso, o suficiente para o fato virar uma verdade no lugar. Creio que a ciência deva ter explicação para isso. Um exemplo bem ilustrativo: boldo, planta que no passado já era endeusada por nossos avós, é comprovadamente estimulante da digestão, sendo empregada hoje pela ciência como medicinal – figura nas farmácias naqueles tubinhos mágicos para acudir o fígado de quem exagera na gordura ou no álcool.

O senso comum tem sua validade, principalmente em regiões desassistidas de ciência, seja no agreste nordestino, nas profundezas da Amazônia, nos grotões de Minas ou nos cortiços e favelas dos grandes centros, mas é nelas que ele pouco poderá fazer ante esse vírus letal. É preciso, pois, senhores homens públicos, de todas as esferas, que parem de desrespeitar as premissas científicas. A hora é de união nessa batalha que é de todos. Nada é mais viral num ser humano do que a soberba, que acaba desaguando num comportamento fanfarrão e desatrelado da realidade.



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