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Estado de Minas ERROS E ACERTOS

Caso Lázaro: mais de 19 milhões em gastos e espetacularização

Especialistas em segurança pública analisam o contexto da caçada de 20 dias em busca do criminoso e as perguntas que ainda precisam de respostas


30/06/2021 14:40

(foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press)
(foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press)

“CPF Cancelado”. A expressão policial utilizada pelo presidente Jair Bolsonaro para “comemorar” a morte de Lázaro Barbosa, 32, nesta segunda-feira (28/6), após 20 dias foragido da polícia, exemplifica um pensamento comum e várias vezes repetido: o de que “bandido bom é bandido morto”. Ao se olhar por este lado, não poderia ser outro o resultado esperado da operação conjunta entre o DF e as forças de segurança de Goiás - resultando na maior operação policial do estado. Mas especialistas em segurança pública, consultados pelo Correio, alertam que não há muito o que comemorar.

Por 20 dias, o Brasil acompanhou o cerco policial a Lázaro Barbosa, que teve início com o assassinato da família Vidal no Incra 9, na Ceilândia. A caçada tomou proporções gigantescas, mais de 270 policiais envolvidos de diferentes forças, helicópteros, cães farejadores e a estimativa de um gasto de mais de R$ 19 milhões. Ao fim, muitas dúvidas permanecem.
Segundo Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), será a hora das corporações refletirem sobre como se deu esta operação. “Qualquer polícia séria agora iria fazer uma análise de caso para saber quais erros e acertos”, destaca.


Para Pedro Abramovay, diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundations, ainda não dá para fazer uma análise definitiva, mas é preciso refletir sobre aprendizados. “Ainda é cedo para cravar. Tanto quem está comemorando quanto quem diz que foi um fracasso está se precipitando. Tratar como sucesso uma operação que termina em morte é sempre muito difícil”, afirma.

Segundo Cássio Thyone, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-perito da Polícia Civil do DF, a operação conseguiu chegar ao objetivo final, mas o resultado poderia ter sido melhor. “Eles conseguiram cessar a ação de Lázaro na região, trouxeram de volta a tranquilidade, mas isso não é sucesso. O melhor resultado seria a apreensão do Lázaro vivo. Primeiro, porque a investigação poderia continuar de forma mais fácil”, analisa.

"O natural seria negociar uma rendição. Mesmo que ele atirasse não precisava o revide de imediato, já que os policiais estavam abrigados", avalia José Vicente da Silva (foto: Arquivo Pessoal )

A grande crítica não se restringe ao fato de Lázaro ter acabado por morrer na operação, já que esse era um desfecho possível, mas o caminho percorrido até chegar a esta finalização. “Lázaro precisava ser detido, inclusive neutralizado se fosse preciso. Mas não tem como comemorar. Foi um gasto milionário, 20 dias de buscas, e deixa em aberto uma lacuna de 'a quem Lázaro servia?'. No interior do Brasil, existem vários Lázaros, que servem a madeireiros, grileiros e aterrorizam as famílias no campo”, destaca Rodrigo Mondego, procurador da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.

Antes mesmo da captura de Lázaro, um fazendeiro de Cocalzinho foi preso suspeito de ajudá-lo na fuga. A Secretaria de Segurança Pública de Goiás disse que, mesmo com Lázaro morto, as investigações continuarão para saber quem mais pode ter ajudado o criminoso ou até mesmo financiado seus crimes. “Se criou uma narrativa de um serial killer, mas essa não é a denominação correta. Se trata de um jagunço. Este é um termo muito mais apropriado”, explica Rodrigo Mondego, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Rio de Janeiro.


O ex-perito Cássio Thyone também aponta outros indícios que levantam a suspeita de que havia mais pessoas o ajudando. “O cara foi encontrado com um agasalho da polícia, com mantimentos na mochila, quatro mil reais, barbeado. A quem interessava que ele escapasse desse cerco? Existe algum mandante por trás do Lázaro?”, questiona.

O ex-secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva também destaca que essa investigação não deveria ter sido divulgada. “O secretário ter anunciado essa relação (com fazendeiros da região) como uma certeza, eu acho que foi uma ação irresponsável, uma preocupação midiática. Nem é o papel dele”, diz.

Para Pedro Abramovay, o resultado de morte em uma operação sempre é ruim, mas muitas vezes é a única opção. “A pior coisa que podemos ter é uma polícia que não cumpre a lei e, no ponto de vista da investigação, as informações que o Lázaro tinha, se ele estava a mando de alguém, essa estrutura criminosa que pode envolver várias outras pessoas, quando ele morre, isso se perde. É sempre ruim quando uma operação policial termina em morte, mas pode ser a única alternativa. Policial não é pago para levar tiro”, analisa.


José Vicente da Silva diz que normalmente outras alternativas são possíveis. Principalmente com tantos policiais envolvidos. “O natural seria negociar uma rendição. Mesmo que ele atirasse não precisava o revide de imediato, já que os policiais estavam abrigados”, avalia. Além disso, ele explica que uma polícia profissional jamais comemoraria uma operação que termina em morte. “Não se comemora morte de ninguém, nem de criminoso. Não fica bem. Quando o policial diz que vai respeitar a vida, é a vida de todo mundo. E a polícia não pode infringir a lei.”

O fim da operação

Inicialmente, a polícia de Goiás disse que Lázaro foi acertado por 38 tiros dos 125 disparados. A polícia diz que ele reagiu à prisão e descarregou duas armas contra as forças de segurança.

Imagens mostram que o corpo de Lázaro ficou totalmente perfurado por balas. Ele chegou a ser levado para o Hospital Municipal Bom Jesus e a polícia técnico-científica de Goiás confirmou a morte.

Para Rodrigo Mondego, não há dúvidas de que a polícia tenha que agir em caso de resistência à prisão. A vida dos policiais não pode ser colocada em risco, porém houve um exagero na ação. “Há indícios de execução; são mais de 30 tiros, ou de vilipêndio de cadáver, que é, mesmo depois de morto, ter levado tiro”, explica.

Caso ele já estivesse morto quando foi removido, houve uma transgressão da lei, acrescenta José Vicente da Silva. “As imagens que foram divulgadas mostram um corpo com todas as características de que tenha morrido; mesmo assim, ele foi colocado em uma ambulância. Se ele já estava morto, isso tem que ser investigado, porque foram descumpridas normais legais”, destaca.

"O povo do Brasil é muito pouco educado e deixou claro que é bárbaro. Não se quer policial, se quer um jagunço", lamenta Rafael Alcadipani (foto: TV Cultura/ reprodução )

Segundo Cássio Thyone, as circunstâncias da morte precisam ser apuradas.”Esse confronto tem que ser explicado, porque a gente só tem uma versão. Tem que ter exame pericial, provas técnicas. Vai dar muito trabalho. E ninguém está falando que foi solicitado uma perícia. Por que? Qual a razão disso?”, questiona. “Olha a quantidade de tiros, foi quase um suicídio, porque uma arma no poder máximo pode efetuar 15 disparos sem ser recarregada. Está meio desproporcional”, completa.

Essa falta de perícia no local onde Lázaro foi atingido é a crítica feita pela vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), Cristiane Damasceno. Em entrevista ao Correio, ela destacou que esclarecer as dúvidas que ficam podem ajudar a melhorar o sistema de buscas brasileiro. "Estado não pode agir na clandestinidade", destacou. 

Após a divulgação da morte de Lázaro, foram muitas as comemorações nas redes sociais e nas ruas de Cocalzinho. Thyone analisa que as comemorações vistas nas redes sociais são um sinal de “banalização da violência” pela população. “As pessoas acham que as coisas vão ser resolvidas dessa forma. Muita gente festejou, mas acho que devemos ficar tristes. Assim como temos que ficar tristes pela família Vidal. Foi como uma caçada a um animal e nós acompanhamos como expectadores”, lamenta.

De acordo com o professor Rafael Alcadipani, a reação da população só reflete a forma como a sociedade pensa em segurança. “O povo do Brasil é muito pouco educado e deixou claro que é bárbaro. Não se quer policial, se quer um jagunço”, afirma.

"Ainda é cedo para cravar. Tanto quem está comemorando quanto quem diz que foi um fracasso está se precipitando. Tratar como sucesso uma operação que termina em morte é sempre muito difícil", avalia Pedro Abromvay (foto: Arquivo)

Caso Lázaro e a “espetacularização”

Nesta segunda-feira (28/6) foi difícil escapar dos vários vídeos compartilhados nas redes sociais do momento da captura de Lázaro Barbosa. Imagens dos policiais colocando o corpo do criminoso na ambulância e comemorando em seguida repercutiram. Para Rodrigo Mondego, não tinha como o desfecho ser diferente já que, desde o início, se criou um espetáculo em torno da fuga de Lázaro. Ele critica como outros crimes não recebem o mesmo tratamento.

“A polícia parece que estava mais preocupada em criar matérias para programas policiais do que em garantir a segurança da população. Foi esse show, soltaram fogos. Isso não é o papel da segurança pública. Deveria ter tido mais investigação e menos pirotecnia”, afirma.

Ele destaca que, no Brasil, ocorrem em torno de 170 homicídios por dia, mas 75% deles não chegam sequer à investigação. “Durante estes 20 dias, diversos assaltos, homicídios e estupros devem ter ocorrido no DF e em Goiás que nem investigação teve porque a prioridade era pegar o Lázaro. A busca por um homicida deveria ser uma prioridade, mas a grande maioria não é nem apurado”, acrescenta.

José Vicente da Silva ainda frisa que o papel da polícia é de proteção da população e não de “caça a bandidos”. "Naturalmente, estes recursos fizeram falta. Nesses 20 dias, deve ter tido uns 70 assassinatos e esses assassinos estavam à solta. O que mostra que o papel da política não é caçar bandido e sim a proteção da população. Bastava algumas equipes de investigação e vigiar as casas de parentes e amigos”, explica.

O caso parecia obra cinematográfica, com direito até mesmo a especulações sobre “pactos com o diabo” que supostamente o criminoso teria feito e que desencadeou uma onda de intolerância religiosa. De acordo com Cássio Thyone, o caso tomou proporções tão grandes devido ao tempo de busca ser tão longo.

“Tomou notoriedade e estamos em um processo irreversível. Boa parte da mídia usou muito sensacionalismo. Se ele tivesse sido pego em dois dias, nada disso teria acontecido. Foram 20 dias que só se falava nisso. Até a vacinação perdeu espaço”, avalia. A grande questão é que a espetacularização é um problema que pode atrapalhar as investigações de casos como este.

“Aquilo que agrada, muitas vezes não é o mais eficiente. Muitas vezes até dá elementos para ele fugir. Isso tem muito mais a ver com política do que com polícia. Para criar essa sensação de que algo está sendo feito”, destaca Pedro Abramovay.

Sucessão de erros

Esta não é a primeira operação policial que resulta em mortes e não em prisões. Este ano, uma operação policial resultou em 27 mortes no Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. A polícia brasileira é uma das que mais mata e mais morre no mundo. O Brasil também tem a segunda maior população carcerária mundial. Para Rodrigo, o resultado do Caso Lázaro demonstra a falha de segurança pública no Brasil em vários aspectos e instituições. “Um laudo mostrou que ele tinha problemas de saúde gravíssimo, que não permitia que ele voltasse para o convívio. Ele poderia ficar em um manicômio judiciário, mas colocam ele em liberdade, o que é um erro. Depois ele volta à prisão e consegue fugir, o que demonstra uma falha do sistema prisional. São erros do Estado ”, elucida.

Apesar de Lázaro Barbosa ter se tornado conhecido este mês pelos brasilienses, os rastros de crime cometidos por ele já vinham há muito tempo. Ele já tinha sido condenado e preso por roubo e estupro. Na Papuda, um laudo psicológico de Lázaro atestou que caso ele voltasse para o convívio social ele voltaria a cometer crimes. Mesmo assim, ele conseguiu o direito ao semiaberto em 2016, quando ele fugiu do Centro de Progressão Penitenciária (CPP). Em 2018, ele foi recapturado em Águas Lindas e quatro meses depois ele fugiu por um buraco no teto do presídio.

Com tudo isso, segundo Rafael Alcadipani, o resultado da operação é “uma crônica da falência da segurança pública”. “tem uma cadeia que não consegue fazer análise de periculosidade e uma polícia de confronto. Tudo isso mostra que o Brasil precisa organizar seu sistema de segurança”, afirma.

Falta de integração entre as forças

Uma outra questão que a operação escancarou, segundo Cássio Thyone, foi a falta de coordenação entre diferentes forças de segurança. Um problema, que segundo ele, atinge todo o país.

Ao fim da primeira semana de buscas, policiais denunciaram que não tinham um comando único, cada corporação tomava suas decisões de forma isolada. “Temos que tentar melhorar a interação entre diferentes forças, porque a integração foi uma dificuldade. O que aconteceu nessa operação é um reflexo do que acontece na segurança pública do Brasil. A gente vê acontecer todos os dias”, afirma.

Apesar desses pontos negativos, José Vicente da Silva, que é coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo (PMSP) e conselheiro do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), diz que a experiência de cooperação entre as forças é uma experiência boa. “Eu vi poucos acertos. Talvez um ponto positivo tenha sido usar uma cooperação de forças. Essa cooperação é sempre conveniente, principalmente quando existe problemas de vizinhança.”

Essa própria pressão dos meios de comunicação e da população pode ter ajudado a criar o cenário para este desfecho, segundo Cássio. “São pessoas que estão sendo submetidas a uma grande pressão, uma cobrança midiática. Não parecia a busca por um fugitivo. A polícia comemorando como se fosse um jogo do Brasil”, lembra.

Essa própria pressão dos meios de comunicação e da população pode ter ajudado a criar o cenário para este desfecho, segundo Cássio. “São pessoas que estão sendo submetidas a uma grande pressão, uma cobrança midiática. Não parecia a busca por um fugitivo. A polícia comemorando como se fosse um jogo do Brasil”, lembra.

Pedro Abramovay cita até mesmo a falta de apoio aos policiais que estavam nessa caçada. “Temos que considerar que as condições de trabalho são muito ruins. O governo não estava dando alimentação. O governo podia mobilizar esse tanto de policiais?”, questiona.

Disputa política

Com toda esta movimentação e atenção ao caso, não demorou para que a busca por Lázaro também virasse palco para uma disputa política, o que, segundo Cássio Thyone, ainda piorou a pressão em cima das forças policiais.

Após oito dias de buscas, o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), chegou a dizer que Lázaro faz polícia 'quase de boba'. Não demorou muito para o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), respondesse com “Não se atreva a desrespeitar policiais goianos”. “O caro escuta o governador falando que ele está sendo feito de bobo. Eles foram levados a este clima”, analisa o ex-perito Cássio Thyone.

Além disso, ele destaca que teve muita disputa de egos. “Muitas vezes chegaram a dizer ‘vamos pegar o Lázaro amanhã’, você não controla todas as variáveis. Temos que ser humildes. Para reconhecer que nem sempre vamos ter sucesso. Teve templos que foram profanados. Foi um absurdo. Mostrou mais um lado da intolerância religiosa. Teve de tudo, fake news, intolerância, vaidade entre as corporações”, analisa.


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