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Estado de Minas

O cientista que abraçou o ensino online aos 70 anos: 'minhas aulas acabaram tendo profundidade maior'

'Percebi que essa modalidade apresenta ganhos imensos em relação ao presencial, pois é possível estender e ampliar de modo significativo o conteúdo das disciplinas', diz o engenheiro mecânico Roberto Tálamo, professor da Universidade Federal do ABC.


22/02/2021 06:55

'Percebi que essa modalidade apresenta ganhos imensos em relação ao presencial, pois é possível estender e ampliar de modo significativo o conteúdo das disciplinas', diz Tálamo(foto: Arquivo pessoal)
'Percebi que essa modalidade apresenta ganhos imensos em relação ao presencial, pois é possível estender e ampliar de modo significativo o conteúdo das disciplinas', diz Tálamo (foto: Arquivo pessoal)

A pandemia de covid-19 forçou muitos professores a se reinventarem para dar conta das aulas à distância. Foi o caso do engenheiro mecânico Roberto Tálamo, de 69 anos, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), que sempre foi "radicalmente contra" o ensino à distância (EAD) e hoje é "absolutamente favorável" à modalidade para o ensino superior.

A mudança de posição de Tálamo sobre EAD no ensino superior aconteceu depois de meses de uma experiência extenuante e cheia de dificuldades, em que ele passou de alguém que não sabia nada sobre como montar e dar uma aula online para alguém que lida com isso todos os dias. Não foi uma jornada fácil.

"A universidade decidiu, em fevereiro de 2020, que as aulas seriam online dali em diante", conta. "Minha primeira turma de EAD estava prevista para setembro. Comecei então uma corrida contra o tempo para me preparar. Para mim, seria tudo novidade. Próximo dos 70 anos, teria que entrar em um mundo novo."

As dificuldades de Tálamo com computadores e internet não são de agora. A sua relação com o mundo cibernético foi difícil no começo. Nos anos 1980, ele trabalhava em empresas que já usavam tecnologia da informação (TI), mas relutava em fazer o mesmo. "O primeiro micro foi comprado pela minha mulher, em 1989, mas eu não chegava nem perto e achava que nunca aprenderia a usá-lo", conta. "Só comecei a fazer isso uns dois anos depois."

Com a internet foi a mesma coisa. Ele relutou em adquirir o serviço e só o fez por pressão dos filhos, mas demorou a começar a usá-lo. "Sem dúvida, sou um usuário tardio", diverte-se hoje. As coisas começaram a mudar quando Tálamo passou a dar aulas, em 1994, na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), hoje Centro Universitário FEI, em São Bernardo do Campo. "Eu ainda não era totalmente familiarizado com o mundo dos computadores, mas como professor no ensino superior comecei a usar TI de forma mais intensiva."

Nada se compara, no entanto, com o trabalho e os obstáculos que ele teve de enfrentar para montar e dar as aulas online para seus alunos da UFABC.

"Eu estava completamente perdido", admite.

"Isolado, comecei a pesquisar o que poderia fazer. De repente, um colega da universidade colocou no nosso grupo de discussão uma dica para elaboração de filmes a partir de apresentações em PowerPoint. Descobri um recurso que estava disponível na plataforma do software, mas que eu nunca tinha usado. Passei a fazê-lo e converti as aulas em filmes."

Pandemia fez com que aulas presenciais migrassem para a internet(foto: Getty Images)
Pandemia fez com que aulas presenciais migrassem para a internet (foto: Getty Images)

Tálamo, então, respirou aliviado achando que tudo estava resolvido, mas quando viu o resultado percebeu que estava aquém do ideal. Até que teve contato com ferramentas de edição de som e imagens com ajuda do pessoal da área de informática da universidade.

Mas nada dava certo. Ele fazia apresentações e elas se perdiam, pois não conseguia gravar nada. Tudo isso levou meses de trabalho e de pesquisa na internet, avançando madrugada a dentro. "Mas eu estava aprendendo alguma coisa", conforma-se.

"Foi nesse momento que tive contato pela rede, com softwares pagos para edição de filme. Não teve jeito, tive que pagar anuidades para obtê-los. Daí em diante a coisa deslanchou. O trabalho de meses e meses tentando fazer e editar filmes com softwares gratuitos deu resultado. Comecei a criá-los rapidamente com os novos programas. Levei meses batalhando com a máquina, mas deu resultado: os vídeos ficaram ótimos."

Depois, ele utilizou um site, que já havia criado para a disciplina, e era só postar os vídeos. Pronto, pensou, agora vai. Mais um engano. "Não dava certo", recorda ele, que acabou comprando uma licença de dois anos de um site mais amigável para o usuário.

"Agora, só faltava me comunicar com os alunos e utilizar os vídeos. Mas como?"

Sem a resposta, Tálamo ligou para um colega da universidade e perguntou o que fazer. "A sugestão dele era usar o Google Meet, do qual eu nunca tinha ouvido falar", conta. "E faltavam só uns dias para a primeira aula. Entrei no programa e vi que havia um local para agendar reuniões. Fui direto nele, sem saber o que iria acontecer. Planejei as aulas, que daria dentro de uns dois ou três dias, sem saber qual seria o resultado."

E chegou o grande dia, o da primeira aula, quando ele saberia enfim se todos o seu esforço durante meses teria valido a pena. Tálamo foi para a frente do computador, abriu a reunião e ficou parado, esperando, sem ter certeza do que iria acontecer. "De repente, uma janela mostra um pedido de participação", lembra.

"Autorizei. Logo em seguida outro e mais outro. Eu estava surpreso com o resultado. De repente, sala cheia, mais de oitenta alunos. Tinha dado certo."

Muitos alunos não têm um espaço físico adequado para se dedicar aos estudos(foto: Getty Images)
Muitos alunos não têm um espaço físico adequado para se dedicar aos estudos (foto: Getty Images)

"Abri o jogo e falei para os alunos que não conhecia mais detalhes da ferramenta Google Meet. Uma aluna começou a me orientar: 'professor, no botão à direita, abaixo, o senhor compartilha a tela. Outro explicou como mudar a arquitetura da sala para caber todos os alunos. E assim foi. Na terceira aula, ei já dominava tudo. O curso transcorreu de modo surpreendente. Nunca imaginei que pudesse chegar àqueles resultados."

Foram esses resultados justamente que fizeram Tálamo abandonar sua convicção contra o ensino à distância e passar a defendê-lo com o mesmo entusiasmo. "Nunca, em quase trinta anos de carreira, havia conseguido atingir o conteúdo que alcancei no EAD", reconhece.

"O curso teve uma extensão e uma profundidade muito maior do que eu conseguia em sala de aula. Percebi que todo aquele tempo ocioso gasto em entrar na sala, procurar o apagador, apagar a lousa, ligar o micro, ligar o retroprojetor, pedir silêncio, procurar giz, escrever o título da aula, desenhar tabelas na lousa, escrever a resolução de exercícios, entre outros, havia desaparecido. Todo o tempo passou a ser tempo útil de aula."

Mas esses resultados só são obtidos, ele ressalva, se houver um bom trabalho prévio de preparação e detalhamento exaustivos das aulas online. "Foram meses trabalhando antecipadamente e preparando apresentações, que detalhavam ponto a ponto cada capítulo ou cada resolução de um exercício", explica Tálamo. "Mas valeu muito a pena. O curso transcorreu na velocidade do som."

Como consequência, hoje ele diz que é absolutamente favorável ao ensino a distância. "Percebi que essa modalidade apresenta ganhos imensos em relação ao presencial", afirma. "É possível estender e ampliar de modo significativo o conteúdo da disciplina. Os exemplos numéricos tornam-se muito mais claros. Em qualquer dúvida de algum aluno, posso abrir uma nova tela auxiliar e montar rapidamente uma fórmula ou um exemplo novo."

Mas, como sempre, há um outro lado. "Existem alguns pontos que exigem muito cuidado", alerta Tálamo. "O andamento do curso dependerá muito mais do aluno. Há o risco de muitos deles não participarem e no final saírem correndo atrás das vídeo-aulas, correndo para recuperar o prejuízo. Isso deve ser contornado com alguma forma de controle de presença e avaliações rigorosas, como as que eu apliquei. A responsabilidade e o compromisso dos alunos serão muito maiores."

A realidade do acesso à internet

Apesar do otimismo de Tálamo, o ensino à distância no Brasil esbarra na realidade da dificuldade de acesso à internet um em cada quatro brasileiros ainda não tem acesso à internet, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E mesmo entre os que têm acesso, nem sempre a qualidade é boa o suficiente para acompanhar aulas à distância.

Além disso há diversos outros problemas de preparo e estrutura, como falta de computadores e a própria inexperiência dos professores com as plataformas. Embora o Brasil tenha alguns anos de experiência de ensino à distância na educação superior, com predominância das instituições privadas de ensino, os resultados já medidos não são todos satisfatórios.

Segundo o mais recente Censo da Educação Superior, feito pelo Inep (órgão do Ministério da Educação), em 2018, pela primeira vez na história, o número de vagas ofertadas em cursos universitários à distância (7,1 milhões) foi maior do que o número de vagas em cursos presenciais (6,3 milhões).

Mas o que espanta é a ainda baixa quantidade de estudantes que conseguem se formar. Em 2018, o Brasil teve 990 mil formandos universitários no ensino presencial, menos da metade da quantidade (2 milhões) de alunos que se matricularam em universidades presenciais naquele mesmo ano. No ensino à distância, isso cai para um quinto: houve apenas 274 mil alunos formandos, em comparação com os 1,3 milhão que se matricularam no mesmo ano.

"Muita gente se matricula achando que o curso à distância vai ser mais fácil, porque o professor não vai estar lá todos os dias", diz à BBC News Brasil Fredric Litto, presidente da Associação Brasileira de Educação à Distância (Abed) e professor emérito da USP.

"Quando na verdade é mais difícil, porque depende da motivação e da maturidade do aluno" em se dedicar o suficiente aos estudos sem a presença física dos docentes, agrega.

Do lado das instituições de ensino, o avanço da EaD foi uma forma de ganhar escala e baratear os cursos, deixando-os mais acessíveis a alunos distantes ou de baixa renda. O problema, diz Litto, é que "uma boa porcentagem das escolas fez isso para baratear (o ensino) e ganhar mais dinheiro, demitindo, por exemplo, o corpo docente com doutorado, que é mais caro de manter. É bom fugir desse tipo de instituição, porque ela provavelmente não vai investir no enriquecimento de seus cursos e materiais e não vai além (do básico)."

Dito isso, Litto acha que o momento atual, que força alunos e professores a ficarem em casa, pode oferecer boas oportunidades para enriquecer o ensino básico com ferramentas de qualidade da educação à distância.

Tálamo lembram que a instituição também precisa dar um suporte maior. "A instituição também terá que contribuir, dando um suporte muito maior, disponibilizando para os professores novas ferramentas e recursos, o que pode exigir maiores gastos financeiros. Vale lembrar que eu paguei anuidade de uso de um site e comprei dois softwares caros."


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