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Estado de Minas

A crescente e perigosa instabilidade no Haiti, país que teve quase 20 governos em 35 anos

Para opositores, Constituição determina que presidente deve sair do cargo neste domingo (8/2). Mas atual mandatário, Jovenel Moïse, tenta se manter no poder com outra leitura da Carta Magna e convocação de referendo.


07/02/2021 13:41 - atualizado 07/02/2021 14:55

Oposição convocou novos protestos para domingo (8/2), data em que cobram saída do presidente(foto: Getty Images)
Oposição convocou novos protestos para domingo (8/2), data em que cobram saída do presidente (foto: Getty Images)
O Haiti, a nação mais pobre do Ocidente, vive um dia crítico neste domingo (7/2).

 

Houve um ultimato de setores da oposição, advogados, acadêmicos e igrejas para o presidente Jovenel Moïse deixar o cargo, tendo em vista que seu mandato de cinco anos está perto do fim.

 

Moïse, por sua vez, que tomou posse em 2017 (um ano depois do que se esperava por causa de irregularidades e protestos que levaram à repetição das eleições de 2015), garante que o seu governo só terminará em 2022.

 

A chegada do dia 7 de fevereiro, dia em que segundo a Constituição deve ocorrer a transferência do poder, foi precedida por uma onda de protestos e greves que culminaram na militarização das ruas de Porto Príncipe e outras cidades da nação caribenha.

 

"O foco atual das tensões é que, de acordo com um grupo crescente de atores, o comando do presidente termina neste domingo e o presidente tem uma interpretação diferente", disse Alexandra Filippova, do Instituto de Justiça e Democracia no Haiti, à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol).

 

“Mas não há espaço para o diálogo. Cada uma das partes está se posicionando muito fortemente, e neste momento os cenários do que vai acontecer não são nada animadores”, acrescenta.

 

Na semana passada, a oposição haitiana anunciou que nomeará uma "comissão de transição" que escolherá um "presidente interino" entre os membros da Suprema Corte e organizará eleições em dois anos.

 

Moïse, por sua vez, anunciou dias depois um referendo para abril a fim de aprovar uma série de reformas na Constituição que, entre outros elementos, permite a reeleição presidencial por dois mandatos consecutivos, algo proibido desde o fim da ditadura de Duvalier, em 1986.

 

O cenário, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, é um dos momentos mais tensos que o Haiti viveu nos últimos anos, o que diz muito sobre uma nação marcada por uma história sem fim de instabilidade política, social e econômica.

 

Desde que a dinastia Duvalier foi derrubada, há 35 anos, o Haiti tem sofrido sucessivas crises de poder, eleições contestadas e golpes de Estado que o tornaram a nação do continente que teve mais governos (não parlamentaristas) em menos tempo desde o final do século 20.

 

De 1986, o país teve quase 20 governos, chefiados por militares, presidentes eleitos ou interinos, conselhos de ministros ou governos de transição.

A gota que encheu o copo

Segundo Filippova, a polêmica sobre o fim do mandato de Moïse e sua contestada proposta de reforma constitucional têm sido a "gota d'água que quebrou a espinha" de um movimento que teve suas raízes no próprio processo eleitoral.

 

“É um cenário mais complicado do que a data do fim do mandato, se levarmos em conta que o presidente Moïse foi eleito por cerca de 600 mil votos em um país de 11 milhões de habitantes”, diz.

 

“Depois, desde que ele assumiu o poder, houve fortes acusações de corrupção, de que o governo não só falhou em proteger a população da violência, mas também foi cúmplice de certos atos violentos”, afirma.


Governo colocou blindados na rua contra manifestantes(foto: Getty Images)
Governo colocou blindados na rua contra manifestantes (foto: Getty Images)

“Moïse também foi muito questionado pelas maneiras como reprimiu os protestos contra ele e pela forma como não conseguiu conter o crime e os sequestros, que aumentaram mais de 200% durante seu governo”, disse ela.

 

Robert Fatton, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, ressalta que outro dos elementos que mais têm soado os alarmes no país caribenho é "a forma como o presidente consolidou o poder".

 

Em janeiro de 2020, Moïse dissolveu o Parlamento e governou o Haiti por decreto desde então.

 

“Não há Parlamento, não há primeiro-ministro, então nos encontramos em uma situação em que Moïse é a única e exclusiva potência do país no momento”, diz também o autor do livro Haiti's Predatory Republic: The Unending Transition to Democracy (2002) ("A República Predatória do Haiti: a transição sem fim para a democracia").

 

Filippova lembra que entre os decretos mais polêmicos estava classificar protestos violentos e vandalismo como "terrorismo", criando um conselho eleitoral "que não segue as regras previamente estabelecidas" e limitando o poder de um grupo de auditores que geralmente supervisionavam o governo.

 

“Esses elementos se tornaram uma preocupação em muitos setores porque o país tem um histórico de governantes que tentam se consolidar no poder e usam reformas constitucionais para reforçar esse poder”, afirma.

 

É neste contexto que as disputas sobre o fim do mandato e a proposta de uma nova Constituição provocaram os atuais protestos.

Leituras controversas da Carta

Como explica Fatton, a polêmica sobre o fim do mandato tem suas causas nas "leituras duplas" que têm sido feitas da Carta Magna.

 

A Constituição haitiana estabelece que a duração do governo é de cinco anos e que a mudança de poder deve ocorrer no dia 7 de fevereiro, dia do aniversário do fim da ditadura.

 

“Na prática, no Haiti, todas as eleições, sem exceção, desde o fim do regime de Duvalier, criaram graves crises sociais, de modo que, na medida em que as disputas são resolvidas, se realizam segundos turnos ou se repetem as eleições, a data que a Constituição estabelece já passou”, afirma.

 

No entanto, diz ele, isso não tem levado os governos a irem "em busca do tempo perdido", como Moïse agora tenta fazer.

 

“(O ex-presidente Jean Bertrand) Aristide sofreu um golpe e quando voltou ao país e voltou ao poder, também quis buscar essa prorrogação do mandato e isso não foi permitido. Por isso há dúvidas se isso deveria ser permitido agora", afirma Fatton.

 

“Há também o fato de muitos considerarem que Moïse está interpretando a lei em seu próprio benefício, visto que no ano passado ele anulou o Congresso por ter sido formado em 2015, usando como argumento a mesma lei que regia sua eleição, o que implicaria que ele teria que deixar o cargo neste domingo", diz Fatton.

 

“Em outras palavras, o presidente usou para dissolver o Parlamento a lógica oposta à que está usando agora para permanecer no poder. E isso levou não só a oposição, mas a maioria dos setores sociais a se opor.”

 

A BBC News Mundo entrou em contato com o governo haitiano para saber sua posição sobre a disputa pelo fim do mandato, mas não obteve resposta.

Reforma

Segundo Filippova, do Instituto de Justiça e Democracia no Haiti, a reforma constitucional proposta pelo presidente também suscitou dúvidas sobre os procedimentos propostos para implementá-la.

 

“Moïse criou uma comissão que está propondo referendo em abril. O problema dessa manobra é que é totalmente inconstitucional segundo a Constituição atual, que afirma claramente que a lei não pode ser alterada por meio de referendo, que é exatamente o que ele está fazendo", diz Filippova.

 

Fantton, por sua vez, indica que a alternativa proposta pelos opositores do atual presidente de criar uma comissão de transição e nomear um juiz da Suprema Corte como presidente também não está prevista em lei.

 

“Estamos falando de ações políticas de ambos os lados que fogem ao marco da atual Constituição em vigor”, afirma.

 

Segundo o acadêmico, a atual situação de instabilidade política no Haiti não pode ser vista fora do contexto de pobreza, desigualdade e ingerência de potências estrangeiras que o país viveu ao longo de sua história.

 

“É uma questão que tem suas raízes nas gigantescas desigualdades econômicas, na tradição política profundamente enraizada em soluções autoritárias para os problemas sociais e na influência da comunidade internacional que tem mediado continuamente na política haitiana em seu próprio benefício", diz.

 

“Essa polarização social e instabilidade em geral fazem parte da trama do Haiti e não acho que haverá uma solução a médio prazo. Se somarmos os problemas gerados pelo covid-19 e que a economia já estava destruída, é fácil prever que estamos caminhando para muitos mais protestos e perigosa instabilidade social e política."


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