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Estado de Minas 'DOENÇA NOVA'

COVID entre indígenas: 'Só uma família na minha aldeia não foi infectada com coronavírus'

Com poucos testes diagnósticos e praticamente sem acesso a serviços de saúde, comunidade com 200 indígenas da etnia Huni Kuin, no Acre, tratou a COVID-19 com plantas medicinais e doações


24/10/2020 06:54 - atualizado 24/10/2020 08:16

Praticamente sem acesso a serviços de saúde, os Huni Kuin trataram da covid-19 com plantas medicinais e doações, diz Ninawa(foto: BBC)
Praticamente sem acesso a serviços de saúde, os Huni Kuin trataram da covid-19 com plantas medicinais e doações, diz Ninawa (foto: BBC)

Em meados de maio, o tio de Ninawa Inu Huni Kui, líder dos Huni Kuin, comunidade indígena espalhada pelo estado do Acre, começou a sentir sintomas de gripe.


Quando a tosse e a febre evoluíram para "dor no pulmão" e falta de ar, veio a desconfiança de que ele poderia ter sido infectado com a doença nova que circulava "na cidade".


Maná duá Bakê foi o primeiro caso de COVID-19 da aldeia, que, em algumas semanas, viu praticamente todos os seus 200 habitantes, distribuídos em 40 famílias, caírem doentes. "Só uma família não foi infectada", conta Ninawa.


A aldeia Maê Txanayá fica no extremo noroeste do país, próximo à fronteira com o Peru, no território Hênê Bariá Namakiá. Quatro dias antes de apresentar sintomas, Maná tivera contato com uma pessoa vinda de Feijó, o município mais próximo, que está a seis horas de barco pelo rio Envira.


A localização remota explica, em parte, por que apenas duas pessoas chegaram a ser atendidas no hospital — uma mulher grávida e uma adolescente de 12 anos.

A maioria foi tratada na aldeia pelos pajés, com plantas medicinais, utilizadas em chás e defumações.


"Até mesmo porque, no período da pandemia mesmo na aldeia, quando estava todo mundo acamado, bem complicada a situação, não apareceu ninguém da Saúde", diz o cacique.

 

 

"Então os pajés tomaram essa decisão, com resultados muito positivos na utilização da medicina tradicional. Porque, se fosse esperar por assistência do sistema de saúde, se fosse depender disso, acho que teriam acontecido coisas bem mais piores. Muitos óbitos."


Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, o primeiro caso de COVID em um indígena da aldeia foi oficialmente diagnosticado em 6 de julho no município de Feijó, uma mulher.

 

 

"Dada a necessidade de monitoramento para identificação de possíveis novos casos, a equipe de saúde dirigiu-se imediatamente à região, estando presente no local no dia 08/07, ocasião em que a coordenadora do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Alto Rio Juruá também compôs a equipe", afirmou, em nota, a assessoria de imprensa do ministério.


"Foi realizada uma busca ativa de síndromes respiratórias na aldeia Maê Txanayá e seu entorno e foram reforçadas as ações de cunho sanitário - essenciais para o controle da doença - destacando a testagem, orientação sobre distanciamento social e uso de máscaras. A equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena ainda acompanhou todo processo de investigação de novos casos e tratamento dos que apresentaram resultados positivos, seja por método laboratorial e/ou clínico epidemiológico."


Aldeia está a seis horas de barco do município de Feijó(foto: BBC)
Aldeia está a seis horas de barco do município de Feijó (foto: BBC)

Sebastião Carlos Oliveira Amorim Kaxinawá, genro de Maná, afirma, entretanto, que após o atendimento em julho a aldeia não teve mais contato com os agentes, a não ser pela visita de um dentista algum tempo depois.


Ninawa foi o terceiro da aldeia a pegar a doença. Acha que foi infectado no hospital, já que, alguns dias antes, fizera um procedimento para retirada da vesícula.


Não chegou a desenvolver uma forma grave de COVID-19, mas atingiu o que ele apelidou de "terceira fase": teve febre, diarreia, "dores no pulmão" e muita dor nas articulações.

 

 

Como líder da Federação do Povo Huni Kuin no Estado do Acre, ele se divide entre a capital, Rio Branco, e a aldeia. E foi na cidade que ele ficou recluso por mais de um mês, já que o exame diagnóstico, depois dos primeiros 14 dias de quarentena, continuou dando positivo.


"Depois eu fiz e não deu mais positivo. Foi quando eu saí para poder correr atrás de socorro pra ajudar o meu povo também."


Comunidade fez vaquinha na internet para garantir alimentação e equipamentos médicos para os indígenas(foto: Reprodução)
Comunidade fez vaquinha na internet para garantir alimentação e equipamentos médicos para os indígenas (foto: Reprodução)

Por meio da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Ninawa e outros líderes indígenas da região articularam-se para pedir doações. Do poder público, segundo ele, a aldeia recebeu algumas cestas básicas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), distribuídas pela Funai.


No início, a principal necessidade era de alimentos, já que parte dos indígenas depende da cidade para comprar mantimentos e, naquele momento, o isolamento era quase total.


Depois, a demanda era por materiais de limpeza e alguns equipamentos médicos.

Carolina Marçal dos Santos, que trabalha na campanha Amazônia do Greenpeace, uma das entidades que se mobilizaram nesses últimos meses, conta que unidades de atenção primária indígena, algo semelhante a uma "enfermaria de campanha", chegaram a ser construídas dentro de alguns territórios.


"Pra que eles tivessem condições de enfrentar a situação ali dentro e não precisassem ser deslocados para regiões distantes."


O projeto, batizado de "Asas da Emergência", fez até o momento 68 voos para distribuir mais de 63 toneladas de doações, percorrendo mais de 96 mil km.


"Faltam coisas básicas como sabão, álcool e coisas mais focadas para atenção de saúde, como cilindros de oxigênio, que a gente tem levado. Em muitas regiões não há energia, a gente precisa inclusive levar geradores para que possam ser utilizados esses equipamentos médicos."


Comunidade dos Huni Kuin, segundo o líder Ninawa, soma 16 mil pessoas no Estado(foto: BBC)
Comunidade dos Huni Kuin, segundo o líder Ninawa, soma 16 mil pessoas no Estado (foto: BBC)

Quase 80% das comunidades indígenas da Amazônia atingidas

Os dados mais recentes da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) apontam 30,7 mil casos de COVID-19 entre indígenas no país e 462 óbitos.


Levantamento feito pela Coiab apenas para a região amazônica com dados complementares fornecidos por lideranças e profissionais de saúde, entretanto, sinalizam um total bem maior: 26,1 mil casos e 676 mortes, com 132 das 170 comunidades indígenas da Amazônia atingidas, quase 80%.


Uma das razões para a discrepância entre os números é o fato de que as informações oficiais consideram apenas os indígenas que habitam aldeias.


A Coiab e o Instituto de pesquisa ambiental da Amazônia (IPAM) argumentam, entretanto, que os indígenas formam um grupo de risco independentemente do local em que moram e, por isso, aqueles que vivem nas cidades também devem compor as estatísticas.


Um levantamento feito pelas duas entidades em junho apontou que a taxa de mortalidade por COVID-19 entre indígenas é 150% mais alta do que a média brasileira e 20% mais alta do que a registrada na região Norte (que é a maior do país).

Conforme o registro da Coiab, não há óbitos na aldeia de Ninawa, mas entre os Huni Kuin, que contam quase 16 mil habitantes distribuídos em 5 municípios diferentes, foram contabilizados 8 — quase todos idosos.


"Com eles foi embora muito conhecimento, de todos os tipos, principalmente da medicina. Os anciões são nossas bibliotecas".


O líder diz que milhares apresentaram sintomas da doença. A maioria, segundo ele, não foi diagnosticada, já que o número de testes rápidos levados às aldeias foi bem menor do que o de sintomáticos.


Segundo a Sesai, foram enviados 780 testes rápidos ao DSEI Alto Rio Juruá, onde se localiza a aldeia Txanayá. Conforme as informações do Ministério da Saúde, a população indígena no distrito é de 18,2 mil pessoas.


A coordenadora executiva do Comissão pró-Índio do Acre, Vera Olinda Sena de Paiva, destaca que a vulnerabilidade dos indígenas não se restringe ao sistema imunológico, que é mais suscetível a algumas doenças.


O próprio modo de vida das comunidades acaba facilitando o contágio. "São vidas de comunidade, em que tudo é muito compartilhado." "Todo mundo é acostumado a comer junto, estar junto, participando das atividades", diz Ninawa.


Assim, na tentativa de conter o surto nas aldeias, além de orientar a população sobre a necessidade do distanciamento social, as lideranças indígenas chegaram a distribuir cartilhas e a gravar áudios na língua local explicando o que era a doença e como ela era transmitida.


Hoje a situação está melhor, ele conta. Mas a ideia é "não facilitar", já que o vírus continua circulando.


"O povo voltou novamente, não 100%, mas retomou o convívio social na comunidade." "Sempre que tem uma reunião nas comunidades os pajés estão lá com as ervas fazendo sua defumação."

Epidemia da borracha

A epidemia de 2020 traz lembranças de um passado não tão distante. Os Huni Kuin foram quase dizimados no primeiro ciclo da borracha, no fim do século 19. Com o aumento do preço da borracha no mercado internacional, houve uma corrida para a região amazônica, para exploração das seringueiras de onde se extraia o látex usado na fabricação do produto. "Foi a correria, o assassinato dos nossos parentes", diz Ninawa.


A tomada dos territórios indígenas daquela época é conhecida na região como "correrias", um tempo marcado por migrações forçadas e massacres.


"Com eles vieram junto a contaminação da gripe, do sarampo, da catapora." "Essas doenças também dizimaram muitos de nossos parentes, de nossos líderes, de nossa população jovem, crianças, mulheres, né, que foi exatamente por esse contato que veio de fora."


As terras dos Huni Kuin começaram a ser demarcadas no fim dos anos 1980. Hoje há 12 territórios reconhecidos no Acre.


*Reportagem e texto de Camilla Veras Mota, de São Paulo, reportagem e imagens de Fernando Crispim e José Monteiro, de Feijó (AC), e produção de Ana Terra Athayde, do Rio de Janeiro.


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