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Estado de Minas PROTESTOS ANTIRRACISMO

"A paz virou guerra", diz professor de português que mora nos EUA

Ronaldo Fortes Ribeiro, de família mineira, nascido na cidade de Minneapolis e residente na Filadélfia, faz relato emocionado sobre sua participação nos protestos pelo fim da violência policial contra os negros


postado em 03/06/2020 04:00 / atualizado em 03/06/2020 00:16

Ronaldo Ribeiro, com a mulher, Rachel, ficou indignado ao ver grupos violentos(foto: Arquivo pessoal)
Ronaldo Ribeiro, com a mulher, Rachel, ficou indignado ao ver grupos violentos (foto: Arquivo pessoal)


As demonstrações de racismo e a truculência policial nos Estados Unidos (EUA) indignam o professor universitário de literatura e língua portuguesa Ronaldo Fortes Ribeiro, de 41 anos, de família mineira, nascido na cidade de Minneapolis, no estado de Minnesota, e residente na Filadélfia há 10 anos. Num relato emocionado, Jay, como é conhecido pelos amigos, faz um paralelo entre sua vida cheia de oportunidades e a de George Floyd, cinco anos mais velho, negro, e assassinado  por um policial branco, em Minneapolis.

Os dias têm sido muito tensos, diz Ronaldo, que, no sábado, ao lado da mulher, a norte-americana Rachel, participou de manifestação contra a violência que se irradia pelo país. Mas, à noite, a paz virou guerra nas ruas, com incêndios, destruição, vandalismo: "Os carros em chamas, as bombas de efeito moral, as lojas saqueadas e os incêndios por todos os lados me pareceram excessivos e criminosos. Bateram na minha porta. Incendiaram os restaurantes na esquina. Quebraram a loja da minha colega. Fiquei com medo. Fiquei com raiva. Rachel, Linda e eu nos escondemos no quarto com duas facas. Nunca tive armas. Sou contra as armas. Fiquei indignado".

Formado em odontologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comunicação social (jornalismo) na PUC Minas, Ronaldo fez mestrado em literatura na Universidade de Winsconsin e não se esquece das raízes mineiras, nem deixa de lado os grandes autores nacionais.

“Sábado (30) foi um dia ao mesmo tempo belo e trágico na Filadélfia, cidade grande e cosmopolita distante duas horas de Nova Iorque. Belo pela demonstração de solidariedade após a morte de George Floyd. Trágico por uma demonstração pacífica ter se transformado em vandalismo, saques a lojas, queima de carros e violência.

Moro na Filadélfia há quase 10 anos. Por uma coincidência do destino, nasci na cidade onde George Floyd morreu, a belíssima e rica Minneapolis, de arquitetura moderna, lindos lagos e um inverno rigorosíssimo, com temperaturas que chegam a menos 30 graus. 

Param por aí as semelhanças entre mim e Floyd. Meu pai (José Leonardo Ribeiro) foi um economista e pesquisador bem-sucedido. Por ter sido um tremendo nerd, papai recebeu uma bolsa da organização Fulbright, no fim dos anos 1970, para estudar no exterior. Partiram papai nerd, mamãe, e meu irmão Heleno, criancinha ainda, não sabendo que ia parar na cidade de Floyd.

Alguns anos mais tarde, sem ter WhatsApp ou internet, mamãe escreveu uma carta para a vovó dando as boas novas que a família tinha acabado de ter um baby boy. Ao contrário do negro Floyd, nasci branquelo e num berço de ouro cheio de amor, livros e possibilidades. 

Os anos se passaram, papai decidiu voltar ao Brasil para ser diretor de uma empresa de pesquisa (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais/Epamig), mamãe foi dar aulas, discutir ideias e nos encher de amor. Meu irmão deixou para trás o halloween, a neve, a banda de rock Kiss, e foi falar português com sotaque na escola nova.

Eu deixei a minha cidade natal e fui ser brasileiro na Belo Horizonte do Clube da Esquina, do clube de esportes Mackenzie, e mais tarde da boemia e dos bares. Quando papai nerd tomou 'um trem pras estrelas', mamãe precisou ainda mais da ajuda da Sueli, nossa babá. Depois vieram outras Suelis, que cuidaram do irmão, de mim e mais tarde da própria mamãe. Mas esse tempo todo, a cidade de Floyd nunca me saiu da cabeça.

Depois de muitos carnavais, o espírito aventureiro e uma bolsa de estudos me levaram para perto da Minneapolis da minha infância. Me enfiei nos livros, e quando finalmente entendi a beleza de Machado de Assis, que tinha me aporrinhado no segundo grau durante a preparação para o vestibular, fui ensinar literatura brasileira e português na Universidade da Filadélfia. E aqui estou até hoje, com a esposa Rachel e a cadela chamada Linda, uma golden retriever 

Nunca conheci Floyd. Mas quando soube da sua morte brutal, resolvi participar da manifestação, porque pensei não só no Floyd mas também na minha infância e na Sueli. Pensei em tudo que recebi do meu pai, da mamãe idealista e amorosa, do irmão cuidadoso, e de como tudo isso não fez parte da realidade da Sueli. E nem da realidade do Floyd. E nem da realidade das outras Suelis que vieram depois. E nem da realidade da Mariley, uma mulher inteligente, trabalhadora e bem-humorada, apesar de todos os pesares.

E foi assim que saí para participar da manifestação num dia belo. Começou claro, sol a pino, brisa gostosa. Depois de um inverno longo, a Filadélfia estava florida, as pessoas de shorts e sandálias, o espírito amistoso. E de repente a indignação dos Floyds e das Suelis veio à tona, se transformando em ira e violência desmedida. Quando já era noite, os carros em chamas, as bombas de efeito moral, as lojas saqueadas, e os incêndios por todos os lados me pareceram excessivos e criminosos. Bateram na minha porta. Incendiaram os restaurantes na esquina. Quebraram a loja da minha colega. Fiquei com medo. E fiquei sem saber o que pensar."


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