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Estado de Minas

Os muros estão de volta, 30 anos depois da queda do muro de Berlim

Calcula-se que há no mundo atualmente 71 muros que não se pode cruzar e que somam cerca de 40 mil quilômetros, o mesmo que a circunferência da Terra


postado em 30/10/2019 08:43 / atualizado em 30/10/2019 10:04

(foto: Herika Martinez / AFP)
(foto: Herika Martinez / AFP)

A queda do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989, com milhares de alemães orientais celebrando a destruição da muralha de concreto, gerou previsões do "fim da história" e a chegada de um mundo sem fronteiras.


Mas 30 anos depois, os muros e grades estão cada vez mais presentes em todo o planeta com temores relacionados à globalização, prometendo soluções de segurança e retomada de identidade, consideram analistas.


"Se quem acompanhou o fim da Guerra Fria observa o que se passa hoje, verá que mudou por completo o paradigma", diz Elisabeth Vallet, pesquisadora da Universidade Quebec de Montreal e especialista em muros de fronteiras.


40.000 km

O traçado de 160 quilômetros do Muro de Berlim se transformou hoje em dia em um local de passeio bucólico muito apreciado por corredores e ciclistas.

 

Em outros lugares acontece o mesmo: atualmente "estamos seguros de que existe o equivalente à circunferência terrestre, ou seja, 40.000 quilômetros no sentido literal", diz Vallet. Esse número teve um forte aumento em 20 anos, e corresponde a "71 muros", definidos como estruturas presas ao solo que não se pode cruzar.


A maioria está no continente asiático, ao redor da Índia, China e Coreia, mas também no Oriente Médio. Foram construídos também na Europa Central, Hungria e Bulgária, além dos Estados Unidos, para tentar conter a chegada de migrantes.


Paralelamente, também há um movimento de retomada dos sistemas democráticos no mundo.


Há 30 anos, na Europa, com o fim da Cortina de Ferro, "as pessoas estavam felizes em ver que era possível derrubar fronteiras que pareciam eternas. Hoje em dia voltou uma época de construção de muros para criar temores e divisões", lamenta Nick Buxton, do Instituto Transnacional, um centro de pesquisas que publicou um relatório sobre o tema ano passado.


Globalização

Os especialistas tentam explicar o retorno dos muros. "No início dos anos 2000, a hipótese era que os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos eram a explicação", diante da ameaça jihadista, explica Vallet.

Atualmente, a ideia mais aceita é dos efeitos da globalização. Com uma necessidade para parte da opinião pública de recuperar a soberania nacional em um mundo que parece aberto para tudo.


As fronteiras "nunca teriam desaparecido, exceto em nossos mapas mentais de viajantes europeus", diz o geógrafo francês e ex-embaixador Michel Foucher em seu livro "O retorno das fronteiras".


"Abolir as fronteiras é fazer desaparecer os Estados, um mundo sem fronteiras é um mundo bárbaro", estima. O pastor Joachim Gauck, que participou da revolução de 1989 na República Democrática Alemã antes de se tornar presidente da Alemanha unificada, considera hoje que os governos devem impor "formas de limitação" para "aliviar os temores da população".


"A globalização gerou um movimento de abertura e um movimento de encerramento", diz Vallet, severa diante dos partidários da livre circulação total.

(foto: Wikipedia)
(foto: Wikipedia)

Erro

"Um dos erros foi postular que as fronteiras, as soberanias, iam desaparecer, o que não é o caso", afirma.

"Isto tem gerado uma forte reação que se apoia no populismo": nos Estados Unidos com o "muro" do presidente Donald Trump entre EUA e México, e na Itália com a fronteira marítima defendida pelo líder da extrema-direita, Matteo Salvini, no Mediterrâneo, diz.


O Brexit também está dentro dessa tendência.


Porque, como resume o cientista político alemão Wolfgang Merkel, o verdadeiro "muro" mundial atualmente é o que separa os cidadãos "cosmopolitas", beneficiários da globalização, dos "comunitaristas" que têm medo ou sofrem com ela.


Essa evolução também preocupa alguns alemães que viveram na RDA comunista, como Karsten Brensing.


Em 1989, antes da queda do Muro de Berlim, Brensing, com 21 anos, conseguiu cruzar a Cortina de Ferro, arriscando sua vida. "Somos a última geração (de alemães) que cresceu em uma ditadura, somos testemunhas da história e é realmente terrível ver que as pessoas pedem de novo para fechar as fronteiras", diz.

Contraste entre o leste e o oeste alemão

Trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, o contraste entre o leste e o oeste da Alemanha vai se apagando pouco a pouco.


- Economia: o leste ainda distante


"A situação no leste é muito melhor do que sua reputação", declarou satisfeito no final de setembro o governo de Angela Merkel, quando apresentou um relatório anual sobre a unidade alemã.


Mesmo assim, o PIB per capita das cinco regiões da antiga RDA só representava 74,7% do oeste da Alemanha em 2018. Desde 2010, essa diferença diminuiu 3,1 pontos, graças a pequenas e médias empresas e ao dinamismo de Berlim, Leipzig e Dresde. A ex-RDA começou longe em 1990, com um setor industrial falido, herdeiro do coletivismo comunista.


A melhora não compensa a ausência de grandes empresas como Volkswagen, Siemens e Bayer, cujas sedes estão no lado oeste, onde empregam milhares de pessoas.


Nenhuma empresa do Dax, índice dos principais valores da Bolsa de Frankfurt, tem sede no leste.


Os "Länder" (estado federado) da antiga RDA continuam trabalhando a reboque do oeste em termos de salário médio: em 2018, um funcionário do oeste ganhava em média 3.339 euros brutos por mês, enquanto no leste eram 2.600 euros, segundo a agência federal para o emprego.


No leste a produtividade também é menor, cerca de 82% da registrada no oeste.


- Emprego: uma brecha que vai se preenchendo pouco a pouco


Acostumados ao pleno emprego estatal da ex-RDA, os alemães do leste viveram nos anos 1990 e 2000 o "choque" do desemprego, com taxas que superavam 30% em algumas cidades.


Mas após ter alcançado o topo em 2005, o desemprego caiu desde então, em parte graças à diminuição demográfica e ao aumento do emprego de meio período (30,5% no leste contra 27,6% no oeste).


Em agosto de 2019, o nível de desemprego era de 4,8% no oeste e 6,4% no leste. As cidades com taxa de desemprego mais alta estão na antiga RDA: Gelsenkirchen (13,8% em abril), Bremerhaven e Duisburg (12%).


A ex-RDA se caracteriza, além disso, por uma taxa de emprego feminino um pouco maior que no oeste (73,9% contra 71,6%).


- Diminuição demográfica preocupante


Em uma Alemanha globalmente envelhecida, em que a idade média passou de 40 anos em 1990 a 45 em 2018, a situação demográfica da antiga RDA continua sendo problemática.


Desde 1991, a população do leste passou de 14,6 para 12,6 milhões de habitantes, enquanto no oeste (incluindo Berlim), subiu de 65,3 para 69,6 milhões.


O dinamismo de cidades como Dresde, Jena e Leipzig não consegue superar o êxodo e o envelhecimento que castigam esssa regiões. Os centros das cidades mostram a tristeza de lojas e edifícios à venda.


Em algumas localidades, como Suhl (Turíngia) e Frankfurt an der Oder (Brandemburgo), a população caiu mais de 30% em três décadas, o que teve repercussões no serviço público e na infraestrutura.


A emigração em massa para o oeste ou para o exterior de jovens adultos no início dos anos 1990 fez com que caísse a taxa de natalidade no leste, o que terá consequências durante várias décadas, segundo os especialistas.


A acolhida de milhares de refugiados na Alemanha desde 2015 não bastou para inverter essa tendência, principalemente considerando que a maioria deles escolheu ficar no oeste.


Reduto da extrema direita no leste

Criado em 2013, o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD) conseguiu seus melhores resultados no leste, onde já tinha entre 20 e 30% dos votos, enquanto no oste consegue, e média, cerca de 10%.

Em junho, uma frente comum de todos os partidos fez falta para impedir que o AfD conquistasse em Görltiz sua primeira cidade importante.


O leste, onde os partidos tradicionais e a antigua esquerda comunista estão em queda, também é um celeiro para o movimento islamofóbico Pegida, que reuniu nos últimos anos milhares de manifestantes em Dresde.


Essa situação está relacionada, segundo os cientistas políticos, com o fato de muitos alemães do leste continuarem nutrindo o sentimento de serem "cidadãos de segunda classe".


Assim, 74% considera, segundo uma pesquisa recente, que continuam existindo "diferenças muito grandes" entre as duas partes do país.

(foto: Paul Zinken / dpa / AFP)
(foto: Paul Zinken / dpa / AFP)
 

Antiga cortina de ferro coberta de verde

 

Olaf Olejnik patrulhava há 30 anos a fronteira ultrafortificada que deveria dissuadir os alemães orientais a passar para o lado ocidental em busca de liberdade.


Hoje, com 50 anos, percorre essa zona, mas não mais como soldado da antigua ditadura comunista, e sim como ornitólogo atento à fauna e flora local.


A fronteira de 1.390 km entre as duas Alemanhas, coberta de arame farpado, minada e vigiada por soldados ensinados a disparar para matar, se transformou, em grande parte, em um paraíso natural onde vivem mais de 1.200 espécies em perigo de extinção.

Linha de vida

"A zona de morte se transformou em linha de vida", explica em entrevista à AFP Olejnik, a poucos metros de uma torre de onde muitas vezes montou garda durante seu serviço militar, mas sem ter disparado um só tiro.

Alarmado pelo êxodo crescente de alemães do leste para a RFA, o regime comunista da RDA começou em 1952 a construir barreiras para reter sua população.


Foi aberta uma vala ao longo da fronteira para impedir que os veículos se deslocassem em alta velocidade para o lado oeste, e foi delimitada uma faixa de proteção de cerca de 500 metros de largura.


Outra zona, de 5 km de extensão, era acessível somente às pessoas consideradas leais ao regime. Foi instalado arame farpado, substituído depois por alambrados e sistema de sinalização eletrônica.


No total, segundo um estudo oficial, 327 pessoas morreram na fronteira entre as duas Alemanhas.


As associações de vítimas julgam esse número inferior à realidade.


Com o tempo, essa faixa, que se estendia desde a fronteira tcheca até o Mar Báltico, se transformou em terra de ninguém, permitiando que a natureza tomasse conta.


"A região se transfomrou em um espaço de vida de grande qualidade para a fauna e a flora", estima Dieter Leupold que, assim como Olejnik, trabalha para o grupo BUND, encarregado do projecto "Cinturão Verde".

(foto: Pixabay)
(foto: Pixabay)
 

Espécies raras

Os ornitólogos da Alemanha Ocidental foram os primeiros a investir no potencial ambiental da fronteira. "Desde os anos 70, observamos do oeste, com nossos binóculos, o valor excepcional do Cinturão Verde", lembra Kai Frobel, um dos fundadores da zona natural.

Apareceram espécies raras de aves, o que também atraiu a atenção de outros apaixonados da RDA, como Olejnik.


Um mês depois da queda do Muro, em novembro de 1989, "em um encontro entre ecologistas do leste e do oeste, foi aprovada uma resolução para proteger o Cinturão Verde como linha de vida", explica Leupold.


O grupo BUND convenceu as autoridades de que, para garantir sua conservação, era preciso vender as terras não reclamadas pelos proprietários após a reunificação, aproximadamente a metade da antiga zona fronteiriça.


O grupo comprou também outras parcelas dos proprietários, gastando um total de 5 milhões de euros (5,6 milhões de dólares) para comprar 900 hectares.


Esse projeto atraiu a atenção da Coreia do Sul, que enviou delegações com a esperança de reproduzir a experiência algum dia em sua zona desmilitarizada (DMZ), que a separa da Coreia do Norte.


Em um dia úmido de outubro, pouco antes do amanhecer, o som dos gansos selvagens soa na floresta.


Um cervo pasta pacificamente enquanto uma raposa passa a poucos metros de um guindaste. "Essa zona se transformou em um refúgio", diz Leupold.

Patrimônio nacional

Mas o grupo BUND ainda tem muito trabalho a fazer. Cerca de 12% da superfície da zona continua submetida à agricultura intensiva ou é utilizada como estrada. É cada vez mais difícil convencer os agricultores a vender, já que alguns proprietários exigem em troca parcelas em outros lugares.

O grupo espera agora que o Parlamento de Saxônia-Anhalt classifique a região como zona protegida, tal como fez na Turíngia.


Isso daria ao grupo recursos financeiros e funcionários adicionais para reconhecer o projeto e poder inscrevê-lo como Patrimônio Nacional.


A história dessa fronteira ainda não está totalmente escrita. Ainda não se sabe quantas pessoas morreram no total.


Os restos da fronteira, como as torres de vigilância, os bunkeres e as cercas, também precisam de atenção e manutenção.


"Um historiador disse uma vez que é preciso esperar pelo menos 30 anos antes dos historiadores dominarem esse tema. Espero que este seja o momento", conclui Leupold.

 

 

 


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