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Estado de Minas POR DENTRO DO IRÃ

Como tradicional prática de funerais abertos no Irã revelava respeito ao meio ambiente

Na segunda reportagem da série sobre o Irã, conheça a prática do zoroastrismo, onde os mortos eram devorados por abutres, para a transição entre os mundos material e espiritual


postado em 25/12/2017 07:00 / atualizado em 25/12/2017 09:54


Yazd, Irã - Depois de cuidadosamente lavados, em túnicas brancas, os corpos eram carregados ao cume da montanha, onde a Torre do Silêncio (Dakhma) se eleva sobre a linha do horizonte da cidade de Yazd, Região Central do Irã. Protegida por muros altos, sobre a sagrada plataforma concêntrica feita de pedra, os cadáveres eram entregues em círculos formados – nesta ordem, por homens na borda externa, mulheres ao meio e crianças na menor roda – em torno do fosso central, um ossuário.  Ao mesmo tempo em que eram abençoados pela exposição à luz do Sol, eram também devorados pelos abutres, naquele que era considerado o último ato de caridade a esses animais, que auxiliam a transição entre os mundos material e espiritual, com capacidade para digerir a matéria decomposta.

Dokhmenashini. Esse é o nome do ritual zoroastriano de “funerais abertos”, em que ocorre a libertação da alma (Ravan) dos apegos terrestres. Acredita-se que, por três dias, estas, sob a proteção do reverenciado anjo Sarosh Yazad, vagam nas proximidades onde se deu a morte, quando recontam os seus bons e maus atos e a sua experiência na Terra. Na madrugada do quarto dia, iniciam as suas jornadas pela ponte Chinavat, onde se encontram com as suas consciências (Daena). Aqueles que seguiram a verdade ganham o paraíso;  adeptos da mentira, o inferno.

As Dakhmas são lugares sagrados, edificados sob ritos e celebrações para abrigar os corpos sem vida que, por seu potencial para a contaminação do entorno, não deveriam entrar em contato com os quatro elementos – terra, ar, água e fogo. Tratava-se, portanto, de não violar a sacralidade da natureza. Alguns estudiosos acreditam que essa prática constitua uma forma natural de saneamento, utilizada na Antiguidade, quando eram frequentes períodos de grande mortandade decorrentes de moléstias e de guerras.

Os corpos eram carregados ao cume das colinas por zoroastrianos chamados nesasalores, num rito destinado a manter a sacralidade dos quatro elementos da natureza e auxiliar as almas na transição entre os mundos (foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)
Os corpos eram carregados ao cume das colinas por zoroastrianos chamados nesasalores, num rito destinado a manter a sacralidade dos quatro elementos da natureza e auxiliar as almas na transição entre os mundos (foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)

Não há precisão de quando a prática se iniciou. No século 5 a.C. o ritual havia sido anotado por Heródoto. Mas há inscrições dos séculos 9 e 10 a.C. que já tratavam, com algumas variações, dessa prática. São mais recentes, contudo, os locais específicos para o rito, as Dakhmas, chamadas no século 19 por ingleses de “Torres do Silêncio ”. Em Yazd, elas foram construídas por volta do século 16. No mundo, o ritual ainda persiste apenas em Mumbai, na Índia. No Irã, foi proibido a partir dos anos 70.

Aos 93 anos, Shahryar é o último cuidador de mortos ainda vivo no Irã(foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)
Aos 93 anos, Shahryar é o último cuidador de mortos ainda vivo no Irã (foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)

Aos 93 anos, Shahryar, único “nesasalor” – que significa cuidador dos mortos  – ainda vivo no Irã, lembra-se perfeitamente quando, há 50 anos, transportou, os dois últimos corpos antes da proibição do rito. Duas turmas de seis se revezavam pela colina para levar o cadáver ao cume. Os muros altos da Dakhma impediam que animais menores se aproximassem e dilacerassem os cadáveres, espalhando pedaços pelas redondezas. No quarto dia, o nesasalor Shahryar, retornava para recolher os ossos descarnados e lançá-los ao fosso, especialmente construído com pedras calcárias que ajudavam na desintegração dos ossos. Com as águas da chuva, a matéria remanescente passava por diversos filtros naturais antes de ser empurrada pelas canaletas ao “centro da Terra”, evitando a contaminação dos lençóis freáticos.

O funeral aberto praticado por zoroastrianos foi fundado no profundo respeito ao meio ambiente. “Todas as criações de Ahura Mazda (Deus) são sagradas e necessárias, não podem ser desperdiçadas e devem ser preservadas”, explica Shahryar, hoje, guardião do sítio arqueológico de Yazd. Casado, pai de cinco filhos, Shahryar conta que apenas os cuidadores de mortos tinham acesso à Dakhma. A função era muito respeitada pela comunidade zoroastriana, responsável inclusive por manter a família do nesasalor.

A proibição das Dakhmas no Irã ocorreu por um conjunto de razões. A começar pelo fato de terem, em princípio, sido projetadas afastadas do perímetro das cidades, que se expandiram com o tempo.  Além disso, como o Islã impõe restrições à dissecação “desnecessária”, uma forma de mutilação, diante da demanda por corpos das escolas de medicina, passaram a ser crescentes os registros de violação das Dakhmas. Após a proibição, os zoroastrianos construíram cemitérios que preservem o completo isolamento das covas com a terra, por meio do emprego de pedras e reboque em cimento.

Entre dois desertos, Yazd, cidade das torres de vento e das torres do silêncio(foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)
Entre dois desertos, Yazd, cidade das torres de vento e das torres do silêncio (foto: Bertha Maakaroun/EM/D. A Press)

Berço do zoroastrismo 
Com a invasão árabe e ascensão do islamismo no século 7, o que mudaria a face do Irã, os desertos que cercam Yazd tornaram-se uma proteção natural para aqueles que não queriam se converter, uma vez que o exército árabe era baseado principalmente em cavalaria.  Por toda a Província de Yazd, de Fars e de Kerman há grande concentração de templos do fogo em ruínas, sítios que também estão espalhados por outras regiões da antiga Pérsia.

Para escapar às conversões que se seguiram ao domínio árabe, muitos dos zoroastrianos também se refugiaram na Índia, no Afeganistão e no Azerbadjão. Nos séculos 19 e 20, muitos migraram para os Estados Unidos, Europa e Austrália, preservando a sua religião, mas compelidos a adaptar as suas práticas e rituais, particularmente aqueles relacionados à morte e à disposição do corpo.

São pouco precisas as estimativas da diáspora e do tamanho da população zoroastriana pelo mundo, que declina em tamanho. As mais otimistas sugerem que sejam, pelo mundo, cerca de 200 mil. No Irã, país em que, dos 82 milhões de habitantes, entre 90% e 95% são xiitas, algo entre 5% e 10% são sunitas, dados do censo sugerem apenas 25 mil zoroastrianos, que, junto às minorias cristãs e de judeus, somam menos de 1% da população. Atualmente, estas são respeitadas e vivem sem restrição de direitos.

Zoroastrismo

Zarathustra é considerado o mensageiro da verdade e da sabedoria. Para os muçulmanos, ele é o primeiro profeta no mundo que professou o monoteísmo, deus único a quem chamava de Ahura Mazda, o Sábio Lorde. Por isso, a religião é também conhecida como masdeísmo. Segundo informações do Museu do Templo do Fogo Vitorioso, em Yazd, Zarathustra, nasceu na antiga terra da Pérsia por volta de 1768 a.C. – e não no século 6 a.C. como comumente se é reportado. Ele morreu aos 77 anos, 37 anos depois de iniciar a pregação e difusão de sua religião. O porta-retrato de Zoroastro foi desenhado a partir das gravuras de Tag-e-Bostan, na província de  Kermanshah, de até 4 mil anos. Além de primeira manifestação da história de um monoteísmo ético, também foi a primeira religião do mundo a defender a sacralidade da natureza, portanto, o meio ambiente, valor pós-moderno, apartidário e global. Os fundamentos do zoroastrismo estão firmados no Avesta (livros sagrados). São sete preceitos principais: o Deus único; o dualismo da luta entre o bem (Ahura Mazda) e o mal (Angra Mainyu); a prevalência da eterna lei da verdade; a existência do bom e generoso espírito; a lei das consequências; a imortalidade da alma após a morte; o triunfo final do bem sobre o mal. Segundo o zoroastrismo, Ahura Mazda concedeu aos seres humanos o livre-arbítrio, que constitui o seu maior e mais significante presente. Nesse sentido, cada um tem o direito optar entre o bem e o mal, embora, em sua justiça, Ahura Mazda tenha advertido as pessoas de que a felicidade ou o sofrimento resultam de suas escolhas. Decorre dessa liberdade individual de se posicionar entre o bem e o mal, o atual mundo material que não permanece tão harmonioso quanto o mundo espiritual. As ideias de Zoroastro do julgamento final, do paraíso, da vinda do Messias também precederam e influenciaram as religiões monoteístas – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo –, que quase 4 mil anos depois ainda disputam, num mundo dividido e em guerra, corações e mentes.
 
O Templo do Fogo
Para zoroastrianos, o fogo é um elemento sagrado, símbolo da purificação, da verdade e da luz do deus Ahura Mazda. Na Antiguidade, como era muito difícil acendê-lo e mantê-lo, as comunidades zoroastrianas desenvolveram casas de fogo comunitárias, em que havia uma chama permanentemente acesa, mantida por guardadores do fogo, profissão mantida pela comunidade. Os templos religiosos onde se celebram cerimônias e festivais são conhecidos como templos do fogo. Possui dois recintos, o mais importante a câmara onde se conserva o fogo sagrado, que arde numa pira metálica colocada sobre uma plataforma de pedra. Os sacerdotes zoroastrianos visitam o fogo cinco vezes ao dia, fazem oferendas de sândalo e incenso, enquanto recitam orações com a boca protegida por um tecido para não contaminá-lo. Em decorrência dessa prática, muitos acreditam que os zoroastrianos sejam "adoradores de fogo",  o que não corresponde àquilo que de fato representa, o símbolo da sabedoria e da luz divina de Ahura Mazda. Um dos templos do fogo mais importantes do mundo, Atashkadeh-e, chamado Templo do Fogo Vitorioso, está Yazd. Ali a  chama é alimentada e se mantém, desde o ano de 470, portanto, há 1.548 anos. Há gradações de elaboração do fogo e, nesse caso, esta chama é a mais complexa, formada por 16 fontes.

O Faravahar
Símbolo mais popular do zoroastrismo, o Faravahar diz respeito ao propósito da vida – viver à imagem e semelhança do deus Ahura Mazda, com o contínuo esforço para a prática do bem. Representa Ashur, o deus assírio da guerra, ou seja guerra eterna entre o bem e o mal, sob o manto de plumas e da proteção de Ahura Mazda.

 


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