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Estado de Minas

Massacre em Manaus foi 'tragédia anunciada'


postado em 05/01/2017 19:07

A revolta na penitenciária Anísio Jobim, em Manaus, que provocou a morte de 56 detentos, foi uma "tragédia anunciada" devido às péssimas condições e a falta de controle do Estado, afirma a especialista em questões de violência Camila Dias.

A guerra de facções que está por trás do massacre em Manaus não acabará a curto prazo, garante Camila Dias, doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal do ABC e autora do livro "Primeiro Comando da Capital - Hegemonia nas prisões e monopólio da violência".

1. O massacre da prisão de Manaus era mesmo uma tragédia anunciada? Por que então chegou a esse ponto sem que o Estado tivesse feito alguma coisa para impedi-la?

Dias - Era uma tragédia anunciada. O relatório de inspeção dos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura (ligado à Secretaria de Direitos Humanos do governo Federal) no início de 2016 apontava as condições de tensionamento entre os grupos de presos naquela unidade especificamente, além da precariedade das instalações físicas e estruturais, incapazes de impedir a invasão da área do presídio onde estavam os presos ameaçados de morte.

Me parece que não apenas não foi feito nada para impedir, como houve facilitação, haja vista a enorme quantidade de armas de fogo que foi vista em poder dos presos, em imagens que circularam pelas redes sociais. Há que se perguntar quais os interesses por trás dessa matança e quem está por trás desses interesses, para muito além dos presos que foram mortos. Por exemplo, será que é mais conveniente governar um Estado e/ou administrar um sistema onde há um grupo hegemônico ou onde há grupos disputando o poder?

2. Temos ouvido muito esses dias que a massacre é resultado de uma "guerra" entre facções criminais. Pode dar mais detalhes sobre esse conflito? Você pensa que é a única razão para explicar essa situação de violência nas prisões brasileiras?

Dias - Eu penso que a "guerra" entre as facções é efeito de uma política de encarceramento em massa que produz e amplifica as péssimas condições das prisões brasileiras. Num contexto de extrema precarização, falta de estrutura, de organização e de necessidade de proteção, o surgimento das facções é uma forma de sobrevivência através da qual os presos conseguem produzir ordem e estabilidade no seu cotidiano. Isso posto, em 2015/2016 começou um tensionamento entre as duas maiores facções do Brasil, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Como são dois grupos com presença nacional, houve um significativo aumento da tensão nas prisões brasileiras e, para além da questão estrutural das prisões mencionadas antes), esses conflitos acabam sendo geradores de violência de instabilidade nas prisões.

O Estado não tem condições de controlar, efetivamente, os presos. Portanto, num situação de ruptura, crescem as condições para o aumento da violência. Assim, com a ruptura entre o CV e o PCC houve uma alinhamento das facções locais (que estão presentes no Brasil inteiro) a um ou a outro desses dois grupos principais e isso tem acirrado ainda mais as tensões.

3. Como se traslada essa guerra pelo controle do narcotráfico até o interior dos presídios?

Dias - Eu não acho que se trate de uma guerra pelo controle do narcotráfico que se desloca para o interior dos presídios. Acho que é um guerra que começa dentro dos presídios e que pode transbordar para as ruas. Mas ela é essencialmente e antes de tudo uma disputa dentro das prisões. Ocorre que no Brasil os grupos que atuam de forma mais contundente na economia ilícita da droga, em sua distribuição nacional, são esses grupos que foram criados dentro das prisões e que tem nas prisões o seu centro de atuação.

A presença e atuação desses grupos em locais estratégicos para a entrada de drogas ilícitas no Brasil pode ser um elemento importante nesta disputa, mas, não é a origem deste problema, na minha visão.

4. O PCC e o CV são as maiores facções criminais brasileiras. Mas o que é a FDN? Pode ser considerada uma forca emergente devido à sua posição estratégica nas fronteiras com Colômbia e Peru?

- Dias - A FDN é uma facção que tem origem na região amazônica, especificamente no estado do Amazonas e tem forte atuação na região Norte do Brasil. A FDN existe há 10 anos e assim como os demais grupos, atua nas prisões e fora das prisões. Neste último caso, o ponto central de atuação é justamente na fronteira norte que é um lugar bastante estratégico na economia da droga, especialmente, por ser um das portas de entrada da cocaína.

A importância da FDN reside justamente na sua presença e no controle que exerce em parte desta região estratégica. A identidade construída em torno da FDN é fortemente ancorada numa valorização da localidade, ou seja, na preservação do controle e da autonomia na sua região de origem, em contraposição a uma tentativa do PCC de se estabelecer naquela região. O PCC que, neste processo de produção de identidades, é o grupo que vem de fora, é proveniente da região mais rica do Brasil (Sudeste) e que pretende exercer controle sobre a região Norte.

Nesta disputa, são acionados elementos que estão profundamente entranhados numa construção cultural e identitário do Brasil e na profunda desigualdade entre as regiões brasileiras. Tais grupos se utilizam desse repertório para construir suas estratégias e suas narrativas.

5. Nesse sentido, é previsível que essas guerras continuem?

Dias - A não ser que eventualmente as lideranças dos grupos consigam se entender, considerando que a guerra apenas enfraquece todos eles. Mas, a possibilidade disso ocorrer dependerá de diálogo entre pessoas importantes nestes grupos. Não acho que possa acontecer num cenário muito próximo, especialmente após a carnificina ocorrida em Manaus.

6. Pode dar mais detalhes sobre a estrutura, organização, plano de negócios e modus operandi dessas facções, especialmente da maior delas, o PCC? Ainda opera só desde dentro dos presídios ou já tem sua influencia estendida fora deles?

Dias - O PCC atua dentro e fora das prisões, São Paulo é seu berço e o principal lócus de sua atuação. Dentro das prisões atua na regulação das relações sociais entre os presos, na mediação de conflitos e na "gestão" do cotidiano dos presos.

No que diz respeito às atividades econômicas, o carro-chefe do PCC é o tráfico de drogas, especialmente maconha e pasta-base de cocaína e seus derivados. Mas, também, tem forte atuação em algumas modalidades de roubos, como bancos, carros-fortes, cargas.

A filiação ao PCC é feita através de um "batismo" onde o novo integrante tem que ser indicado por um membro do grupo, que será seu padrinho. Os integrantes batizados do PCC são chamados de "irmãos". Eles têm um conjunto normas de comportamento que devem ser seguidas de forma estrita pelos "irmãos" e também pelos "companheiros"- nome dado às pessoas que convivem nos mesmos espaços e que não são batizados.

Em São Paulo o PCC praticamente não tem grupos rivais que ameacem a sua hegemonia dentro e fora das prisões. O PCC seguia num processo de nacionalização através das prisões e da migração de seus membros para outros estados. Foi justamente no bojo deste processo que se iniciaram os conflitos acima mencionados.

7. Na sua opinião, o que o Estado brasileiro deve fazer para contornar essa situação? Você considera que se corre o risco de recriar uma situação como no México?

Dias - Não acho que se pode recriar a situação do México, pois, trata-se de contextos históricos, culturais, sociais, econômicos, geográficos e políticos muito diferentes. Os grupos brasileiros são diferentes dos grupos mexicanos. O mercado em que atuam, assim como a inserção deles na economia da droga são completamente distintos.

Na minha opinião a única forma de reduzir esses problemas é através de um conjunto de políticas de médio e longo prazo que articulem ações de redução de vulnerabilidade a determinados segmentos da população, priorizem a prevenção ao invés da repressão e que tenham como objetivo a redução do encarceramento. Fora disso, acredito que quaisquer outras propostas de cunho imediatista, como as que tem sido anunciadas - transferência para o sistema penitenciário federal, construção de mais prisões - não resolverão o problema, apenas darão uma satisfação para a opinião pública até que o caso saia dos noticiários. Até que uma nova tragédia aconteça. E assim caminharemos.


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