(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LUTO

Morre o jornalista, pensador e escritor João Paulo Cunha

O intelectual mineiro, de 63 anos, deixa o legado de compromisso ético com o conhecimento. O velório será realizado neste sábado (10/9), no Parque da Colina


09/09/2022 16:25 - atualizado 16/09/2022 15:10

João Paulo, cabelos e barbas brancas.
João Paulo escreveu para o Estado de Minas por mais de 14 anos (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
O jornalista João Paulo Pinto da Cunha morreu, aos 63 anos, nesta sexta-feira (9/9), após lutar contra o câncer no esôfago. O velório será realizado neste sábado (10/9), das 11h às 13h, na capela 4 do Parque da Colina, em Belo Horizonte. 

 

Apaixonado por filosofia, professor universitário, especialista em saúde pública e escritor, o mineiro de Belo Horizonte deixa o legado de compromisso ético e rigor intelectual em todos os campos do conhecimento que experimentou.


João Paulo era formado em psicologia, pedagogia, filosofia e comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na época da Constituinte de 1988, trabalhou na formulação de propostas para a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Não escondia o orgulho de ter ajudado a construir o SUS, com o propósito de garantir saúde ao povo brasileiro. Foi pesquisador da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Deu aulas na PUC Minas e do Centro Universitário Newton Paiva nas áreas de psicologia, ética e sociologia.

 

João Paulo trabalhou 18 anos no jornal Estado de Minas. Foi subeditor do caderno Gerais, cargo que assumiu em 1996. Posteriormente, assumiu o comando do caderno EM Cultura e do suplemento Pensar, coordenados por ele durante 17 anos.

 

"O João Paulo, além de ter sido um editor atento e entusiasmado, era um intelectual com uma grande virtude: escrevia com clareza sobre temas variados e densos. Seus textos sempre diziam muito ao leitor", afirma Carlos Marcelo, diretor de redação do EM.

 

João tinha a filosofia como norte da vida, do pensamento e de seu trabalho. Orgulhoso de se dizer marxista e comunista, sempre lutou pela democracia, pela liberdade de expressão e contra a exclusão social, a lamentável marca registrada do Brasil. Tinha a convicção de que é possível fazer do Brasil um país realmente democrático. E batalhava por isso. 

 

Modesto, ele sempre dividia seu imenso saber com leitores, jovens repórteres, colegas jornalistas e alunos. João, como era chamado por todos, era um cara simples, que adorava usar camiseta branca da Hering, seu "figurino" tradicional.

De Marx a Zeca Pagodinho

Inteligência luminar, amava Marx, Mozart, João Gilberto, Zeca Pagodinho, Elomar, Paulinho da Viola, samba, novelas, Chico Buarque. Era aberto ao mundo erudito e à cena pop.

 

Nos primórdios do Big Brother Brasil, acompanhava atentamente as jogadas dos "brothers". Conhecia profundamente Guimarães Rosa, cultuava a professora e filósofa mineira Sônia Viegas, foi "discípulo"do filósofo e pensador Padre Vaz. Conhecia profundamente a Bíblia.

 

João acompanhava atentamente o cenário musical. Encantou-se com a letra de "Que tal um samba?", último lançamento de Chico Buarque, prenúncio delicado de dias melhores para o Brasil. Amava e conhecia profundamente a ópera, a história da MPB e do samba. Defendia o axé dos detratores. Admirava o rap de Mano Brown. Considerava Roberto Carlos um grande artista e cantor, embora repetitivo nos últimos tempos.

 

Em sua casa, em Lagoa Santa, guardou imensa coleção de livros, dos quais tinha ciúmes. Há lá várias edições da mesma obra. Pensadores brasileiros e estrangeiros, romancistas, cronistas, poetas, ensaístas e, sobretudo, filósofos também moram ali, em imensas estantes. Já não havia mais lugar para livros, que "invadiram" mesas e outros espaços da casa.

 

Admirador da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João foi colunista do jornal Brasil De Fato e jamais se furtou a dizer -- e escrever -- o que pensava.

 

Também ligado aos artistas de Minas, sempre estimulou músicos que lutavam por espaço em BH, como editor do EM e como presidente do BDMG Cultural, a convite do então governador Fernando Pimentel (PT). Ultimamente, dedicou-se a projeto sobre a trajetória do dramaturgo João das Neves (1935-2018).

Dedicado à saúde, admirador de Elomar

João Paulo Pinto da Cunha nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 17 de maio de 1959. Iniciou sua carreira jornalística em 1989 como assessor de imprensa da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, onde trabalhou durante oito anos.

 

Em 2009, publicou o livro “Elomar – O Cantador do Rio Gavião”, sobre a trajetória do cantor e compositor baiano Elomar, acompanhado de caixa com as partituras do cancioneiro do artista. Também é autor de “Em busca do tempo presente”, lançado em 2011 pela editora Comunicação de Fato, seleção de artigos e ensaios que publicava no caderno Pensar.

 

Era casado com a administradora Cibele Malafaia. Deixa a filha Joana Cunha, de seu primeiro casamento, com Mariana Tavares, e a neta Antônia.

"Fonte de inspiração"

“É uma perda em vários níveis. Ele era um exemplo, um jornalista que sabia refletir, discernir, elaborar um pensamento complexo sobre os elementos da cultura, da identidade brasileira, sobre as artes. Tinha uma formação sólida e consistente. Era um leitor voraz. Ele foi muito inspirador para gerações de jornalistas”, disse Rogério Faria Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras.

 

Alessandra Mello, presidenta do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, também lamentou a morte de João Paulo. “Ele era um dos mais brilhantes jornalistas do Brasil. Culto, extremamente culto. É uma perda muito grande para o jornalismo mineiro a passagem do João Paulo Cunha. Ele realmente acreditava que o jornalismo era um instrumento para mudar a realidade, um instrumento de cidadania”. 

 

A jornalista lembrou um episódio simbólico do seu domínio sobre os assuntos mais diversos. “No dia que o Michael Jackson morreu, [estávamos] na redação do Estado de Minas, já era hora do fechamento, aquela confusão, o João sentou no computador e em 30 minutos escreveu um texto brilhante, o mais brilhante, sobre a trajetória de Michael Jackson desde o começo da carreira até o final da vida dele. Ele sabia de tudo, da cultura pop à mais elitista”, relembra a presidente do sindicato.

Biblioteca da redação

"Em 2006, com centenas de livros indicados e repassados por João Paulo Cunha, editor de Cultura do EM, e outras centenas que troquei em sebos de BH, montamos uma biblioteca na redação do Diário da Tarde e do Estado de Minas. Durante dez anos, essa biblioteca emprestou milhares de livros de qualidade, sempre com boas sugestões do João Paulo, a colegas de trabalho, de estagiários a veteranos", relembra o jornalista Paulo Nogueira.

 

"Todos na redação tiveram a oportunidade de conhecer ou reler clássicos da literatura, por meio dos vários exemplares de obras como “Cem anos de Solidão”, “Grande sertão: veredas”, “Crime e castigo”, “Anna Kariênina”, e também de autores iniciantes e muitas outras sobre jornalismo, artes e filosofia", aponta.

 

"Com certeza, essas leituras refletiram no trabalho profissional e na vida de um incalculável número de jornalistas que passaram ou continuam na redação. Ainda hoje, muitos lembram as boas leituras e a generosidade e a paciência de João Paulo em sugerir e comentar sobre os livros, pessoalmente e em sua coluna semanal no caderno Pensar. De maneira simples e didática, João Paulo falava com conhecimento de múltiplas áreas de conhecimento e sempre com um olhar voltado para a democratização da informação e da cultura e pela inclusão social e liberdade de expressão. João Paulo deixa um legado incalculável de ensinamentos às gerações que com ele conviveram e vão muito além de sua finitude presencial", afirma Nogueira.

 

 “O João Paulo foi uma das mentes mais brilhantes que eu já conheci. Foi meu editor muitos anos. Ele pensava o Brasil de uma maneira diferente, de uma maneira muito bacana", afirmou o escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes, muito emocionado. Herculano foi o "companheiro de mesa" de João Paulo -- sentavam-se na mesma bancada na redação do Estado de Minas.


"Uma grande perda para o jornalismo cultural de Minas Gerais. O João Paulo foi um profissional exemplar, tanto no aspecto ético quanto técnico. Ele tinha uma escrita maravilhosa e ótimos argumentos. Você poderia até não concordar com o que ele escrevia, mas tinha de admitir que era um texto fantástico”, lembrou o jornalista e escritor José Eduardo Gonçalves.

“Ele foi uma grande escola”, afirma Sérgio Rodrigo, presidente da Fundação Clóvis Salgado, que trabalhou com João Paulo no EM. “Era referência do bom jornalismo, muito ético, profissional e pessoalmente. Foi com ele que percebi que a gente nunca para de aprender. Era uma pessoa que estudava todos os dias e sempre buscava aprender mais. Parte o corpo, mas fica o legado”.


"João Paulo era de uma generosidade, simplicidade e educação sem igual. Ele tratava todo mundo, independente de quem fosse, da mesma forma. E, como jornalista, era referência. Te dava uma aula sobre qualquer assunto. Escrevia sobre qualquer assunto em pouco tempo. Vai ser difícil preencher essa lacuna", afirma Rafael Radicchi, diagramador do caderno de Cultura do EM, que trabalhou vários anos com João.

O ''tutor'' de Clara

A jornalista Clara Arreguy, proprietária da Outubro Edições, trabalhou com João Paulo Cunha no Estado de Minas até se transferir para Brasília, onde mora. "João e eu vivemos uma relação tão próxima durante sete anos que era comum a gente se tratar por nós. Ele era meu chefe, mas trabalhávamos em tal sintonia que o plural não era majestático, era uma realidade que vivíamos profissional e pessoalmente. Isso por causa de sua extrema generosidade. Porque, a rigor, ele sabia tudo e eu me sentia, ao seu lado, eterna aprendiz", relembra.

"Quando me perguntam sobre estudos, explico que não fiz mestrado nem doutorado, mas que trabalhei com o João durante sete anos. Esse foi meu maior e melhor aprendizado. Ao me ensinar a ler – agora não apenas literatura, mas também filosofia, história, política, geografia, sociologia e tantos outros temas que nem me passava pela cabeça entender –, João foi meu tutor. Me guiou pela mão. Mudou a minha vida. Me fez ser e me sentir mais inteligente, mais culta, mais bem informada. Porque ele era inteligente, culto, bem informado e generoso. Não guardava conhecimento. Pelo contrário, distribuía a rodo, com amor e carinho pelas pessoas. João era tudo isso do ponto de vista intelectual, mas era sobretudo bom. Bondade que qualquer um pode ver neste olhar que agora está eternizado no meu coração, nas minhas retinas, nas minhas saudades", afirma Clara Arreguy.

 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)