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Estado de Minas VIDAS EM TRANSIÇÃO

O homem que "transformou" Emília em David e assombrou BH há 100 anos

Médico que surpreendeu cidade em 1917 em cirurgia para corrigir malformação de rapaz que era criado como menina mudou destino do jovem e história da profissão


08/08/2022 04:00 - atualizado 14/09/2022 16:01

O médico David Corrêa Rabello
O médico David Corrêa Rabello (1885-1939), mineiro de Diamantina, em imagem da Academia Mineira de Medicina, onde é patrono da cadeira 62 (foto: ACADEMIA MINEIRA DE MEDICINA/DIVULGAÇÃO)

Um encontro que mudaria vidas e entraria para a história da medicina e de Belo Horizonte – não sem causar muito burburinho. Assim pode ser definido o momento em que o destino colocou no mesmo caminho um médico então com 32 anos e a paciente de 19 no longínquo ano de 1917, na jovem capital mineira, em um episódio que ecoa até hoje e segue na memória de belo-horizontinos mais antigos.

O rumoroso episódio mostrado na série de reportagens “De Emília a David – Vidas em transição” teve como protagonistas David Corrêa Rabello (1885-1939), mineiro de Diamantina, formado em medicina no Rio de Janeiro (RJ), com especialização em cirurgia (1914) em hospitais de Paris (França) e Berlim (Alemanha), e estabelecido em Belo Horizonte, e Emília Soares (1898-1951), na época estudante do curso normal, tradicional formação para jovens mulheres na época.



Naquele setembro de 1917, Emília Soares, criada e educada como mulher, apelidada Miloca, foi levada pelo pai ao consultório do doutor David, “porque, tendo chegado aos 19 anos, ainda não havia menstruado”, conforme registra o professor, escritor e pesquisador Luiz Morando no seu recente trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”.

“É compreensível o estranhamento que o caso provocou na população. Uma cidade via um dos seus conterrâneos deixar de usar vestidos para usar ternos, além de trocar o nome Emília Soares para David Soares. O nome homenageava o médico que promovera o que ficou conhecido como primeiro caso de mudança de sexo em BH”, afirma Luiz Morando.

Ainda que o caso tenha se notabilizado dessa forma, é bom explicar que se tratava de um diagnóstico de hipospádia. Traduzindo: Emília sofria de uma malformação da genitália que acomete pessoas do sexo masculino.

Retratos da vida

Nos anos seguintes à cirurgia, o jovem David Pereira Soares se casou – com uma antiga colega de escola –, trabalhou como “fiscal do imposto do consumo” e, a partir de 1929, na Secretaria de Agricultura. Muitos dos fios dessa história se perderam no tempo, em grande parte apagados pelo fato de que o casal não teve filhos que poderiam ajudar a contar sua trajetória.

Atendendo a solicitação do Estado de Minas, a Diretoria de Recursos Humanos do governo estadual informou não ter localizado registro de funcionário (a) com tal nome, apesar de acrescentar que servidores “procuraram por todas as vias disponíveis, mas não obtiveram sucesso”.

No Centro de Memória da Medicina (Cememor) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em BH, visitantes podem conhecer parte do episódio – incluindo o trabalho escrito pelo médico David Rabello com base na cirurgia de Emília/David para concorrer ao cargo de professor substituto da então Faculdade de Medicina de Bello Horizonte, em 1918. Em um volume arquivado no Cememor, estão duas teses que lhe deram o primeiro lugar no pleito: “Um caso de malformação genito-urinária tratado cirurgicamente” e “A intervenção cirúrgica na diphteria”.

Na introdução do primeiro trabalho, conforme assinala Luiz Morando, Rabello deixa clara sua postura ética, explicando que o estudo fora publicado “após consentimento explícito do paciente”, e garantindo que David Soares teve “todo interesse em que se desse a maior publicidade possível às circunstâncias que envolvem sua personalidade ‘morphologica e psychica’, para que não paire a menor sombra de dúvida relativamente às suas possibilidades funcionais”.

Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles
Nascida e criada em BH, Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos, se lembra do casarão vizinho à escola em que estudou, onde o doutor Rabello morava e clinicava (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press )


Recordações entre a juventude da época

Quem era adolescente na primeira metade do século 20 não se esquece da história, a exemplo do que testemunha Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos, nascida e criada em BH.

“Todo mundo se conhecia na cidade, e o assunto era muito comentado, principalmente pelos adultos”, diz Maria Amélia, viúva do jornalista e escritor José Bento Teixeira de Salles (1922-2013).

“A cirurgia ficou famosa, falavam que a mulher tinha virado homem. Um fato extraordinário! O doutor Rabello era um médico conceituado, muito conhecido e respeitado”, conta Maria Amélia, que se lembra da casa onde morava o cirurgião: na Avenida João Pinheiro com a Rua Bernardo Guimarães, perto da Praça da Liberdade – um imóvel já demolido, e do qual ela mostra foto nesta reportagem, a partir do original pertencente ao acervo do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).

“O consultório dele ficava no porão da casa, mas era um porão mais alto. Eu vi o doutor Rabello algumas vezes, quando voltava para casa do Grupo Escolar Afonso Pena”, diz Maria Amélia, em relação à escola vizinha, que ainda funciona na avenida.

No livro “Passageiros do tempo”, José Bento escreveu: “Na saída das aulas do grupo escolar, era frequente eu subir a Avenida João Pinheiro até a Praça da Liberdade com meu colega José Sette Câmara. Na esquina de João Pinheiro com Bernardo Guimarães, ficava a casa do doutor David Rabello, médico que, para os meus olhos, era uma espécie de mágico: transformara uma mulher em homem, com uma simples intervenção cirúrgica”.

Nome gravado na Academia

O médico David Corrêa Rabello é patrono da cadeira 62 da Academia Mineira de Medicina. O site da instituição traz sua biografia escrita por Christobaldo Motta de Almeida. “David Corrêa Rabello, filho de Sebastião Rabelo e de Agostinha de Sá Corrêa Rabello, nasceu em Diamantina, em Minas Gerais, em 30 de outubro de 1885”, escreveu.

“Fez o curso primário com sua mãe, professora na cidade, e o curso secundário na Escola Normal de Diamantina. Em seguida, desloca-se para Belo Horizonte, onde, no Ginásio Mineiro, faz os exames preparatórios que o habilitavam a matricular-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Cola grau em abril de 1909 e recebe o diploma de médico em 26 de novembro de 1910”, segundo o biógrafo.

Ainda segundo o texto, o médico exerceu a profissão por aproximados dois anos em Diamantina, atendendo a operários da construção de um ramal de estrada de ferro. “Empreendeu viagem de estudos à Europa em 1912, permanecendo lá até 1914, tendo frequentado serviços médicos importantes na França, em Paris e, na Alemanha, em Berck e Berlim. No retorno, abre consultório em Belo Horizonte, onde realiza pequenas cirurgias e clinica. Bem-sucedido profissionalmente, de atitudes corajosas, operou a si próprio de uma hérnia inguinal que o atormentava”, diz o texto da academia.

O caso Emília, claro, não deixaria de ser lembrado. “Praticou outro ato cirúrgico audaz para a época, a primeira cirurgia realizada no Brasil de um caso de pseudo-hermafroditismo, em uma moça que, após a cirurgia, pôde trocar o nome para o de uma pessoa do sexo masculino, e viver com tal.”

Ingressou na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte por concurso, com a tese: “Uma anomalia na configuração interior de um cérebro humano”, tomando posse em 20 de fevereiro de 1916 como professor substituto, para a Seção de Anatomia Descritiva e Topográfica, prossegue o biógrafo.

Depois de apresentar a tese também relacionada à cirurgia, denominada “Um caso de malformação genito-urinária tratado cirurgicamente”, além de “A intervenção cirúrgica na difteria”, em 1918, segundo a biografia foi nomeado para a Clínica Cirúrgica e Clínica Pediátrica Cirúrgica, em 1919.

Em 1921, mais um episódio de destaque profissional: após começar a exercer as atividades cirúrgicas no Hospital São Vicente de Paulo, onde instalou mesa e material cirúrgico que havia adquirido mais de seis anos antes na Europa, tornou-se o pioneiro da cirurgia ortopédica em Minas Gerais.

Prisioneiro político

A biografia dedicaria parte também às posturas políticas e sociais do cirurgião, definido como “um inconformado com a miséria que parte da população exibia e com as injustiças sociais a que estavam sujeitos os trabalhadores”. Na política começa a militar na Aliança Nacional Libertadora, e sua participação ativa leva-o à prisão em 1935.

“Pertencia àquele grupo de médicos que, no início do século, fizeram da medicina um sacerdócio, dedicando-se com profissionalismo, e muitas vezes gratuitamente, a minorar o sofrimento dos seus pacientes. Em 1937, sofre um acidente vascular cerebral que determina a sua aposentadoria, e falece em 10 de fevereiro de 1939”, conclui o texto da academia.

A edição do Estado de Minas do dia seguinte destacou a repercussão nos meios científicos mineiros da morte do “ilustre cirurgião, uma das grandes culturas da medicina brasileira”. “Distinguiu dentre os demais colegas pela sua dedicação ao ensino e rara inteligência”, destaca trecho da reportagem.

Com a palavra, o doutor Rabello


Trechos de anotações do médico sobre o caso Emília/David
(em grafia original)


  • “Em setembro de 1917, veio-nos ao consultório E. S., conduzida pelo pae, justamente preocupado, declarando-nos que sua filha, embora tendo já atingido os 19 annos, ainda não tinha visto uma só vez o corrimento menstrual”

  • “O aspecto exterior de E.S. é nitidamente masculino: o olhar firme encontrando o do interlocutor sem se desviar, a voz grossa, segura, construindo phrases perfeitas”

  • “Subiu-nos a escada rapidamente, com o passo firme, característico de quem se apoia com todo o pé e não apenas com a ponta dos sapatos”

  • “É indivíduo magro, esguio, com traços physionomicos acentuados; grandes olhos, glabella, malares e nariz fortes; grossos lábios e grandes dentes; coberto o queixo e o lábio superior de pelos já abundantes”


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