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Estado de Minas BRUMADINHO, 1 ANO DEPOIS

Dom Vicente de Paula Ferreira: 'É urgente que se pense em caminhos alternativos'

Bispo que assumiu a missão de levar amparo e esperança às vítimas do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão conta ao EM o que viu e como a tarefa mudou sua vida


postado em 24/01/2020 06:00 / atualizado em 24/01/2020 08:48

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A.Press)
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A.Press)


Ao se ver no núcleo da maior tragédia humanitária e ambiental mineira, o líder religioso teve dúvidas, se questionou, temeu não ser capaz, mas tomou uma decisão corajosa que mudaria a sua vida e a de seu rebanho. Em meio à devastação e ao sofrimento causados pelo rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, o bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte dom Vicente de Paula Ferreira se mudou para o município, e desde então passa dias incomunicável, percorrendo as comunidades atingidas mais carentes e isoladas do Vale do Rio Paraopeba para levar auxílio humanitário, psíquico, social, espiritual e esperança.“Não fui preparado para lidar com um rompimento de barragem. Quanto mais nessa extensão. Comecei a questionar os valores da vida. Por que têm de acontecer coisas assim tão brutais? Por que deixaram acontecer uma tragédia dessas? É raro o dia em que não choro pela situação de Brumadinho”, desabafa o religioso, que aos 49 anos é bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e responsável pela Região de Nossa Senhora do Rosário, com 150 comunidades, incluindo Brumadinho. Em meio a essa demanda da vocação e às vésperas de um ano da catástrofe que matou 270 pessoas, incluindo duas gestantes, ele concedeu entrevista ao Estado de Minas num de seus raros retornos a Belo Horizonte.

A tragédia de Brumadinho trouxe impactos para o senhor? Como, um ano depois, o senhor descreveria essas mudanças?
Do dia 25 (de janeiro de 2019) em diante comecei a viver uma conversão de vida. Incluí a pauta da ecologia integral. A nossa forma de lidar com o meio ambiente. O rastro de destruição foi muito impactante para mim não apenas como um homem de fé, mas como pessoa. Comecei a perceber que por mais que tivesse estudado e que acumulasse conhecimento, estava lá e não sabia onde havia barragens, que riscos elas tinham. Me percebi em uma alienação. Mas foi uma mudança brusca, porque as soluções para a região são imediatas. Tivemos de nos lançar (a Igreja e ele) de corpo e alma para alcançar os caminhos (dos atingidos). Quando aconteceu (o rompimento), tivemos de nos lançar por inteiros. Nessa hora não tem diretrizes para seguir.

Como foi a situação que o senhor testemunhou e os desafios após o rompimento?
No mesmo dia, fiz de tudo para chegar até Brumadinho, passando por vários caminhos e bloqueios nas estradas. Era uma situação em que se sentia o desespero das pessoas todos os dias. Tinha gente chegando na igreja, enterrando um filho e desesperada porque o outro estava desaparecido. Mas estavam todos com medo, porque não podiam atravessar para o outro lado (o município foi partido pela avalanche de lama) e a sirene ainda soava lembrando os riscos de mais rompimentos. Nosso Centro de Líderes, que hoje é o Santuário de Nossa Senhora do Rosário, ficou aberto para receber pessoas que foram retiradas de suas casas, quem tinha medo de a lama chegar até elas. Recebemos, ao mesmo tempo, gente das corporações internacionais pedindo um tipo de parceria. Hospedamos esses voluntários na casa paroquial, organizamos a distribuição de doações que chegaram e fomos entrando no território para conhecer as comunidades, sem distinção.

Após o auxílio emergencial, o senhor continuou em Brumadinho. Que tipo de trabalho desempenhou?
O segundo momento é o de articular e dar as mãos. Somos uma rede de comunidades cristãs. Criamos esse trabalho de articulação social. O amparo material é menor neste momento. Mas o grande amparo agora é estar ao lado das pessoas que estão em luto, em sofrimento, desnorteadas, para verem que não as abandonamos. Temos reuniões com os atingidos, participamos de audiências, discutimos caminhos alternativos, estamos muito presentes e a nossa proposta é o fortalecimento das comunidades. Não podem brigar entre si pelo dinheiro de indenizações.

Quais são as dificuldades que o senhor vê hoje, sendo uma das pessoas que melhor conhecem o território devastado?
As pautas hoje, em Brumadinho, são muito complexas. Uma palavra que resume o sentimento de angústia no território atingido é indefinição. Há o que é realizado de reparos e de compensações, que são oficiais. Mas há outros aspectos. A questão dos danos morais espirituais. Um luto que não para. Pessoas que não foram encontradas. Isso já deixa uma ferida aberta o tempo todo no coração das pessoas. Como podemos falar de reparo de traumas que serão marcas nas vidas das pessoas? São 270 mortes. É uma coisa muito profunda. Isso tem consequências no tecido social da região. Não há condições de se medir isso. A região de Brumadinho era uma até 25 de janeiro de 2019. Depois dessa data, passou a ser outra. Inclusive, na constituição diferente de pessoas que chegam, com costumes diferentes. As famílias foram removidas de seu meio ambiente e acabaram levadas para um outro meio ambiente e isso traz muitas mudanças duradouras.

Como cada atingido reage e pode ser ajudado?
O desespero é grande. Escuto muita gente na igreja, na sala de atendimentos, e é rara a pessoa que não está tomando algum tipo de remédio. Acompanho muitas famílias, inclusive as suas vidas dentro das casas delas. O índice de consumo de ansiolíticos se tornou muito alto. Um homem, por exemplo, que perdeu a sua filha, me disse claramente: “Nunca tomei remédios na minha vida. Depois do dia 25, só vivo a poder de remédios”. Então, você pode acompanhar psicologica e espiritualmente, mas o corpo e a alma dessa pessoa estão feridos e começam então a ter outras demandas que não estão nos pacotes. Quem vai acompanhar essas pessoas?

O senhor poderia detalhar algum drama que lhe chamou mais a atenção nesse tempo?
Muitos casos me chamam a atenção. Me pego vendo o desamparo das pessoas que estão olhando para o vazio e isso dói demais na gente. A gente pensa que por mais que se tente lutar, ajudar a pessoa a reconstruir sua vida, vemos que não estão dando conta de abraçar esses objetivos. O que vemos também é choro toda hora. Tem casas onde as famílias estão presas em angústias e o que resta a fazer é chorar o tempo inteiro. Tenho muito apreço por uma família, a do senhor Geraldo e da dona Ambrosina. Até me emociono ao falar deles. Perderam a filha e o genro, deixando um casal de netos gêmeos que se chamam Geraldo e Antônio. Esses dois estão num nível de sofrimento muito alto. Até agora não encontraram a filha. Mas mesmo sob essa dor surge a força, pois estão cuidando dos netos de 1 ano e 4 meses como se fossem seus filhos – e o são. Os meninos estão uma gracinha, mas você vê o choque nesse casal. O senhor Geraldo mesmo é um que disse que nunca tinha tomado remédios. E que hoje só vive com remédios. Os meninos são uma lembrança, mas também uma saída, pois já chamam os avós de papai e mamãe.

Que questões e necessidades básicas ainda estão em aberto nas áreas atingidas?
Consideramos que há pautas não respondidas, como por exemplo os agricultores que perderam seus terrenos. Ainda não foi feita uma proposta de reintegração clara. Uma das coisas mais complicadas é quando perguntamos se os atingidos estão sendo escutados e às vezes a resposta é que não. Então, às vezes, vem uma decisão de cima para baixo que passa por cima do desejo dos atingidos. Isso não é uma forma de tentar reparar as coisas. A questão da água. Já tivemos de socorrer comunidades que estavam sem água. Nas comunidades vemos que as interrogações estão presentes dentro do território atingido. Qual a segurança da água que se consome? Está contaminada? Pode estar ou não contaminada. As comunidades são muito inseguras com relação a isso. Além de terem a carência mesmo. Já tivemos de pedir socorro a uma entidade para levar um caminhão de água para a comunidade de Ribeirão, que é uma comunidade de quilombolas que usam poços artesianos, mas os poços secaram.

No longo prazo, qual é o futuro que o senhor vislumbra para a região?
Temos de debater caminhos alternativos, até mesmo de economia. Caminhos que passam pela ecologia, pela cultura, pelo turismo, pela agricultura familiar. Isso tem de ser debatido como propostas alternativas para a gente dialogar com um sistema que é unitário, que é o da mineração, da dependência do minério. Isso até as autoridades sabem. Quando há um império de uma coisa única, um patrão único, fica difícil de dialogar sobre outras perspectivas. Na região de Brumadinho é urgente que se pense em caminhos alternativos. Se continuarmos nesse mesmo processo, a dor só será mais aguda. Vem pela frente uma pergunta sobre a crise hídrica, sobre a questão dos mananciais. Do próprio Rio Paraopeba, que foi duramente atingido e já começa a repercutir na Região Metropolitana de Belo Horizonte.



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