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Escravidão no Brasil: como esta descoberta rara pode impactar a história

Veja vídeo e entenda a importância deste mural encontrado em Ouro Preto, Minas Gerais


postado em 21/10/2019 06:00 / atualizado em 21/10/2019 16:11


Ouro Preto – O presidente da Fundação Palmares, Vanderlei Lourenço, virá a Ouro Preto em 16 de novembro com dois objetivos ligados ao patrimônio nacional de matriz africana: participar da inauguração da Casa de Cultura Negra, iniciativa inédita no país, e conhecer o porão de um sobrado no Centro Histórico da cidade, na Região Central de Minas, reconhecida como Patrimônio da Humanidade. No local, foram descobertos desenhos que podem ter sido feitos por uma vítima da escravidão – o regime só extinto no Brasil em 1888 pela Lei Áurea –, e aguçam a curiosidade de moradores e visitantes.

 

“Considero fantástico o achado, e nos interessa muito. Cidades de Minas, em especial as do Ciclo do Ouro, a exemplo de Ouro Preto, receberam grande parte dos africanos que chegaram ao Brasil no século 18, muitos deles com conhecimento avançado sobre mineração e que, depois, compraram a liberdade”, diz o presidente da fundação criada há 31 anos e vinculada ao Ministério da Cidadania.

 

Segundo Vanderlei, a descoberta no casarão da Rua Conde de Bobadela, conhecida como Rua Direita, fortalece ainda mais o que Ouro Preto representa para o país. Para maior conhecimento, adianta, vai fazer contato com a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia vinculada ao Ministério da Cidadania, para um trabalho conjunto de pesquisa a fim de se obterem maiores esclarecimentos e conhecimento sobre os desenhos. A Fundação Palmares é “guardiã da cultura negra” e responsável pela preservação do patrimônio de matriz africana no país.


 

Viagem


 

Para muitos que chegam ao sobrado em obras de restauração há dois anos e nove meses, a visita significa uma viagem ao passado com escalas na história da cidade, nas lembranças pessoais e, principalmente, em emoções que revigoram a cultura. Foi com o ar espontâneo da surpresa, que a aposentada Denise Maria Pignataro Fernandes, de 86 anos, entrou no porão do imóvel onde morou de 1933 a 1964.

 

No espaço requalificado – ao lado, ficará a cozinha de um restaurante a ser inaugurado em 2020 –, ela se recordou imediatamente das conversas com os irmãos mais velhos, que lhe contavam sobre os desenhos na parede de barro revestindo o alicerce de pedra. “Aqui era muito escuro, raramente entrava, ficava mais do lado de fora, no quintal”, conta dona Denise, que, depois de se casar com Joaquim Claudino Filho, com quem está há 56 anos se mudou para um imóvel do outro da rua, a poucos metros da Praça Tiradentes.

 

Os desenhos reavivaram a memória de Denise, natural de Passagem de Mariana, na cidade vizinha de Mariana, e de mudança com a família para o sobrado com apenas 3 meses de vida. “Esta casa é cheia de recordações. Quando criança, sonhava muito com um menino negro, e depois o via na sala, nos quartos. Ele fazia algumas premonições...coisas que acabavam acontecendo, como acidentes”, revela a aposentada, que chegou a comentar com os pais sobre a aparição. “Depois, o menino acabou sumindo. Ouro Preto tem muitas histórias.” Na visita ao sobrado, Denise estava acompanhada das filhas Claunise, nutricionista, e Ivanise, geógrafa, ambas atentas às explicações da mãe e impressionadas com os desenhos.

 

A história mais recente, divulgada em 29 de setembro pelo Estado de Minas e narrada pelo empresário Philipe Passos, da família proprietária do imóvel, ganhou mundo e entusiasmou moradores de Ouro Preto, antiga Vila Rica, onde chegaram levas e mais levas de escravos vindos da África para trabalhar na mineração do ouro. O conjunto de desenhos ocupa área de 2,50 metros de largura por 1,20m de altura e contém cenas coletivas – duas mulheres trabalhando ao pilão, com uma ave no alto, um grupo (feminino e masculino) de 13 pessoas, perto do que parece ser uma torre, e um navio com mais duas figuras humanas. Há também um animal de grandes proporções, que pode ser um guepardo ou chita e uma ave pernalta (veja quadro).

(foto: Arte EM)
(foto: Arte EM)

 

Casa de Cultura Negra

 

Espaço para a comunidade afro-brasileira local destinada a fortalecer a cultura, manter tradições centenárias e desenvolver atividades sociais e educativas, a Casa de Cultura Negra será aberta em 16 de novembro, por iniciativa da Prefeitura de Ouro Preto. Fica ao lado da Igreja Santa Efigênia, no Bairro Alto da Cruz, no Centro Histórico. A iniciativa inédita no país, segundo especialistas, ocupa a Sala Chico Rei, que foi reformada, ampliada e ganhou mais um módulo com novos serviços e duas arenas, tipo anfiteatro, na área externa. O nome Casa de Cultura Negra, antes Sala Chico Rei, foi mudado em 2017, por lei municipal, atendendo ao pedido dos integrantes do Fórum da Igualdade Racial de Ouro Preto (Firop). Mês da cultura, novembro tem como data importante o dia 20, em memória do líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi dos Palmares, morto em 1695.

Memória gravada na parede

A aposentada Denise Fernandes, que viveu no sobrado entre 1933 e 1964, e atual dono do imóvel, Philipe Passos: surpresa e promessa de preservação (foto: Fotos: Fred Bottrel/EM/D.A Press)
A aposentada Denise Fernandes, que viveu no sobrado entre 1933 e 1964, e atual dono do imóvel, Philipe Passos: surpresa e promessa de preservação (foto: Fotos: Fred Bottrel/EM/D.A Press)


Conhecer o painel com os desenhos africanos localizados no porão do sobrado da Rua Conde de Bobadela, no Centro Histórico de Ouro Preto, consiste em uma experiência fascinante e demanda estudos para iluminar mais esta página da história de Minas. Impossível ficar indiferente. O achado encantou o pesquisador da história de Ouro Preto Marcelo José Dias Hypólito, de 50 anos: “Arrepiei quando vi”, resume. Para ele, que trabalha também como guia de turismo, “Ouro Preto guarda uma história muito rica, em grande parte construída pela mão dos negros. Nosso maior artista, o Aleijadinho (Antonio Francisco Lisboa, 1738-1814), era filho de um português e de uma negra. Temos também a figura de Chico Rei. Com toda certeza, o porão era uma senzala, pois, pela localização, os donos podiam exercer, do alto, o controle”, explica.

 

Figura mítica da antiga Vila Rica, Chico Rei, nascido Galanga no Congo, no século 17, foi aprisionado com a família, quando era monarca, e trazido ao Rio de Janeiro. Mais tarde, se tornou Chico Rei de Ouro Preto, dono de mina de ouro e respeitado pela sua nobreza e generosidade. Os negros deixaram ainda seu legado na construção das igrejas de Santa Efigênia e de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, no Centro Histórico, diz o pesquisador.

 

Ao falar sobre os desenhos, Marcelo destaca que todos elementos em cena são distantes da realidade de Ouro Preto, na época da escravidão. “O pilão era típico da África, só chegou ao Brasil no período do café. As duas mulheres parecem preparar a comida, assim com as pessoas, ao lado, convivendo na aldeia. Navios não chegavam aqui, assim como aves desse tipo. Tudo isso parece registro de alguém que conta sua história. Como os escravos não sabiam escrever, desenhavam”, afirma ao comentar os traços anos mais tarde povoaram a vida da família da aposentada Denise Maria Pignataro Fernandes, de 86 anos, que morou no imóvel de 1933 a 1964.

Iluminação


Parte do painel talhado em baixo-relevo no porão e que ainda será estudado em detalhes
Parte do painel talhado em baixo-relevo no porão e que ainda será estudado em detalhes

As palavras lançam luz sobre os desenhos, e o atual proprietário do imóvel, Philipe Passos quer preservá-los da melhor forma, protegendo com vidro especial e encomendando iluminação especial para valorizar cada centímetro do espaço na casa de mais de 200 anos. E considera importante a visita do presidente da Fundação Palmares. Ao lado de dona Denise, o empresário está certo de que a mão escravizada fez os desenhos. “Encontramos também um cachimbo típico dos negros africanos. Tudo isso exige estudos, mas todos os que viram até agora ficaram surpresos e impressionados”. Foi durante a obra que um funcionário localizou os desenhos no porão, sendo necessário fazer um desaterro.

 

Cada detalhe no porão chama a atenção de Philipe: “Veja só esta escada, no navio, levando para a gávea. (alto do mastro). Esses desenhos representam, para mim, um prolongamento do Cais do Valongo, do Rio de Janeiro”, diz o empresário, numa referência ao antigo cais na zona portuária carioca que recebeu, em 2017, o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Vale lembrar que Ouro Preto, pelo Centro Histórico, foi o primeiro sítio no país (1980) a receber a chancela da Unesco. Autor de um painel de grandes proporções (8m por 9m), inspirado nos desenhos e em destaque para o restaurante, o artista plástico ouro-pretano e residente na capital, Jorge dos Anjos, ressalta que os desenhos remetem à África, ao Mali, pois já viu gravuras em livros com “aquelas torres e muros trabalhados em relevo”.


 

História


 

A região da Costa da Mina, na África, foi durante décadas a principal fornecedora de escravos para o Brasil. O auge ocorreu no século 18, justamente no período em que a produção de ouro era a base das economias brasileira e portuguesa. Dos 3,6 milhões de escravos que o país recebeu da África, entre 1500 e 1888, 1,8 milhão vieram no período da chamada corrida do ouro – o que equivale a dizer que na África, durante 100 anos, uma média diária de 50 negros teve a liberdade roubada para se tornar escravo no Brasil. Os dados constam da série de matérias Ouro de Minas – 300 anos de história, publicada pelo Estado de Minas em maio de 2005 a partir de reportagens em Portugal, França, Inglaterra, África e Brasil.

 

Quase 7 mil quilômetros separavam a África das minas de ouro no Brasil. Os escravos que no século 18 partiam da Fortaleza de São João Batista de Ajudá, no Benin, cruzando o Oceano Atlântico em direção às áreas de garimpo e minas percorriam a distância na viagem que durava dois meses.


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