
Para confeccionar o boletim de ocorrência, a servidora pública precisa ouvir o relato das pessoas que perderam tudo na tragédia. “Os documentos são peças fundamentais para que as vítimas reivindiquem seus direitos”, acrescenta. São histórias tristes, que não a deixam indiferente ao fazer o registro do BO. Em alguns casos, Solange Rodrigues diz que não consegue conter as lágrimas. E quando encerra o expediente, cai aos prantos depois de tantas narrativas da tragédia. “Chego em casa e fico acordada até de madrugada, imaginando a dor que essas pessoas estão passando. É uma situação muito triste.”
Uma dessas histórias tem como personagem uma mulher de 40 anos, que decidiu aprender a ler e escrever. Ela estava na escola com a filha mais velha na hora da tragédia, em Bento Rodrigues. A caçula, de 10 anos, estava em casa. “Quando iniciou a fuga do mar de lama, que vinha em direção à escola, a mulher foi em direção ao perigo, para salvar a filha mais nova”, contou Solange.
De acordo com o relato da vítima à servidora pública, em meio ao desespero, veio um primeiro alívio ao encontrar sua caçula no meio do caminho, chorando de medo. O abraço foi rápido, pois a lama se aproximava, arrasando com tudo. A mulher recordou que, no desespero, jogou a menina em cima da carroceria de uma caminhonete que passava.
Como não havia mais lugar e as pessoas tentavam subir de qualquer forma no veículo, a mãe contou que seguiu com a mais velha por um morro em direção a uma mata, para onde várias pessoas também corriam em busca de abrigo. Com a chegada da noite, a mulher, sua filha e um irmão, com alguns vizinhos, se abrigaram no matagal. O irmão dela tentava abrir caminho para chegar a outro distrito.
De acordo com a identificadora, a mulher lhe contou que foi uma longa noite, em que ela pensava na filha que deixou na caminhonete. Pensava na possibilidade de o veículo ter sido levado pela lama com todos que estavam nele. Por duas vezes, ela disse que escutou gritos de socorro na mata, durante a madrugada. Então, pensava em sua caçula e saía correndo no escuro tropeçando em troncos de árvores.
LEMBRANÇAS DO HORROR Na primeira vez, encontrou uma senhora idosa atolada na lama. Na segunda, um menino com barro até a cintura. A angústia da mãe só terminou na manhã do dia seguinte, quando reencontrou a filha em Mariana, que havia sido resgatada sem ferimentos. “Ela me disse que foi como se tivesse nascido de novo. Perder a filha seria a sua própria sentença de morte.”
Ontem, a mulher passou mal ao entrar na delegacia móvel da Polícia Civil. O barulho do ar-condicionado do ônibus trouxe de volta as lembranças da lama. “Ela não queria entrar no veículo, pois o barulho parecia com o da lama destruindo tudo. Era muito alto, segundo ela”, contou Solange Rodrigues.
Para a identificadora, o que ela está presenciando na cidade a faz refletir sobre a própria existência. “É como se eu estivesse escrevendo páginas de um livro, com relatos que ficarão marcados para sempre na minha vida e na história de Mariana.”
