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Estado de Minas Cicatrizes da peste

Tuberculose, que deu fama de local de cura a BH, volta a assustar com superbactérias

Chamada Cidade-Sanatório graças a seus ares amenos, BH já acolheu levas de tuberculosos. Mas, superada a epidemia do século passado, superbacilos seguem matando silenciosamente


09/08/2015 11:00 - atualizado 09/08/2015 13:01

Paciente internado em um dos hospitais especializados de Belo Horizonte: maior desafio é garantir a conclusão do tratamento, que dura pelo menos seis meses
Paciente internado em um dos hospitais especializados de Belo Horizonte: maior desafio é garantir a conclusão do tratamento, que dura pelo menos seis meses (foto: Euler Junior/EM/D.A Press)


Tosse, tosse, tosse. Tosse, sangue e ainda mais tosse. Tossir por mais de três semanas seguidas já foi equivalente a receber uma sentença de morte. No tempo em que uma peste inspirava poetas, músicos e outros artistas, a falta de remédios conhecidos originou versos à tuberculose, influenciando o movimento literário conhecido como romantismo e o termo sombrio que associava doença e literatura: o mal do século. Na vida real, porém, a epidemia nada tinha de romântica. Nas primeiras décadas dos anos 1900, sem remédios conhecidos contra a “tísica”, figuras como o sambista Noel Rosa eram enviadas a Belo Horizonte, que ganhou fama de cidade-sanatório, por oferecer clima ameno e distância das tentações das boêmias noites cariocas. Atrás da “fama” da capital, e da cura, infectados chegavam aos montes. Para trás, deixavam casamentos desmarcados, empregos, famílias, suas próprias origens. Mas, além dos apregoados “ares” das alterosas, a verdade é que pouco se podia fazer por toda essa gente. A medicina de então se resumia a técnicas alternativas e dolorosas, como a injeção de ar no peito (o pneumotórax), a retirada de partes dos pulmões e até de costelas. Se nada mais adiantasse, restava “tocar um tango argentino”, como resumiu o poeta tísico Manuel Bandeira que, entretanto, viveria até os 82 anos.

Se você conhece casos de tuberculose na sua família ou pessoas próximas, conte pra nós.
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Quase um século depois do surgimento dos primeiros sanatórios no país, na década de 1920 (o primeiro em BH foi o Hospital Alberto Cavalcanti, em 1927), a tísica volta a assustar. No Brasil, 16ª posição entre os 22 países que concentram 80% dos casos atuais, surgem em média cerca de 70 mil tuberculosos por ano. Mas esses números estão em queda. Na verdade, o que preocupa os especialistas é a manifestação moderna de um velho mal: as superbactérias, resistentes aos medicamentos já conhecidos. De 2000 até agora, já foram tratados perto de 285 casos com esse superorganismo em Minas. No país inteiro, no mesmo período, a contaminação multirresistente atingiu 10 mil pessoas.

Em 2014, foram registrados em Minas 3,7 mil casos de tuberculose em suas várias formas. Destes, 108 pacientes morreram. A taxa de mortalidade pela doença no estado está em 3%, quase 50% acima da média nacional, de 2,1%. Quando os pacientes em tratamento abandonam os medicamentos (o que cria resistência aos antibióticos), a situação piora, podendo evoluir para a forma multirresistente do mal (MDR-TB, na sigla em inglês). E já há casos documentados de contaminação por bacilos extensivamente resistentes (XDR-TB), extremamente mais agressivos e letais. “Não queremos alarmar ninguém, mas está aumentando o contágio pelo XDR-TB, que ainda não tem tratamento”, alerta Frederico Thadeu Campos, coordenador de Pneumologia e ex-diretor do Hospital Júlia Kubitschek, inaugurado originalmente como sanatório, há 54 anos, na Região do Barreiro, em BH.

Referência na capital, o Júlia Kubitschek trata, atualmente, 34 pacientes contaminados pela supertuberculose, submetidos à combinação de cinco drogas, às vezes seis, entre elas o aminoglicosídeo, injetado diariamente, na tentativa de combater a XDR-TB. Segundo a pneumologista Munira Martins de Oliveira, chefe do Setor de Tuberculose da instituição, não há garantia de cura de todos casos de MDR e XDR. O índice de sucesso na recuperação dos doentes é de apenas 63,3% – e é dos melhores do país. Dos restantes, 15% morrem e 19% abandonam novamente o tratamento. “No passado, tivemos casos de pessoas que morreram e, ao recolher os pertences, descobrimos todo o medicamento de meses dentro da gaveta”, explica a médica, que tenta humanizar o tratamento dos isolados, brigando pelo fornecimento de máscaras N95 para acompanhantes, capazes de filtrar até 95% dos bacilos.

SUPERFILTROS Sob ameaça da chegada de novos supertuberculosos, a Ala G do Júlia Kubitschek recebeu em dezembro filtros de ar especiais, capazes de isolar até 34 pessoas contaminadas pelo tipo mais resistente da tuberculose. “Veja aquele paciente ali. Para mim, parece a volta do passado”, suspira, por trás da máscara branca, de uso obrigatório, o médico Frederico Ozanam de Fuccio, de 74 anos, que chegou a presenciar os estertores do surto de tuberculose durante a residência em medicina, no início da profissão.

O médico se refere ao andar cansado de um dos quatro pacientes de TB-XDR já internados, observado através do visor envidraçado da Ala G. Para entrar na unidade, só com autorização especial da direção do hospital. Lá dentro, o caminhoneiro J.J., de 55 anos, mal consegue se sustentar de pé. Com seus 38 quilos, quase o peso de uma criança, está totalmente isolado há seis anos e três meses para evitar o contágio, exatamente como acontecia no passado. “Se eu ao menos sonhasse passar pelo que estou passando, nunca teria desobedecido aos médicos. Tomava vergonha na cara”, arrepende-se ele, depois de diversos abandonos de tratamento. Quando os exames negativavam, o motorista voltava à rotina de cigarro e bebida.

Apesar de se sentir debilitado, J.J. faz questão de interromper as leituras bíblicas para prestar seu depoimento, na esperança de evitar que outras pessoas recaiam no erro. Quem tem tosse há mais de três semanas, acompanhada de febre alta e escarros de sangue, deve procurar tratamento gratuito nos postos de saúde. Antes de seis meses, é vedado interromper a medicação. Dependendo do histórico, os pacientes são vigiados até na hora de engolir o comprimido. “Existe muito preconceito contra a tuberculose. E tem de ter mesmo. Essa doença é traiçoeira e perigosa. Sinto que estou me corroendo por dentro”, desabafa, em um esforço, o caminhoneiro.

 

Marcas do passado

Pneumotórax 

(Manuel Bandeira – diagnosticado com tuberculose aos 18 anos)

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos,
A vida inteira que poderia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico.
Diga trinta e três.
Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
Respire
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.
Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

  

Prevenção

No Brasil, em 1920, com a Reforma Carlos Chagas, que deu origem ao Departamento Nacional de Saúde Pública, o Estado passou a estar mais presente na luta contra a doença, criando a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. Na década de 1930, surgiram avanços no combate à doença, com a vacina do Bacilo de Calmette e Guérin (BCG), nome que homenageia os dois cientistas que a desenvolveram, em 1920, em Paris. No Brasil, os bebês tomam a vacina BCG no primeiro mês de vida. Se desenvolver a marquinha da cicatriz no braço, até seis meses depois da inoculação, é sinal de que a criança está mais protegida. A vacinação, iniciada no país em 1973, não imuniza integralmente contra a doença, mas protege contra suas formas mais graves.


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