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Estado de Minas

Conheça história de mineira que trocou cartas com tenente francês na Segunda Guerra

Marina Maria Lafayette de Andrada Ibrahim recorda-se da troca de correspondência com tenente francês. Rendição da Alemanha completa hoje 70 anos


postado em 08/05/2015 06:00 / atualizado em 08/05/2015 13:29

Marina Maria Lafayette de Andrada Ibrahim mostra página do diário com o calendário marcando o dia 8 de maio de 1945:
Marina Maria Lafayette de Andrada Ibrahim mostra página do diário com o calendário marcando o dia 8 de maio de 1945: "Foi um dia extraordinário! Maravilhoso!" (foto: FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)

Na página do querido diário, escrita em 8 de maio de 1945, a jovem desenhou bandeiras, celebrou com alegria a data e fez questão de colar a folhinha do calendário para marcar bem sua história e o fim do pior tormento da humanidade no século 20. “Foi um dia extraordinário! Maravilhoso!”, recorda-se Marina Maria Lafayette de Andrada Ibrahim, de 95 anos, ao abrir o caderno, amarelado pela vida, no qual registrou as impressões sobre o término, na Europa, da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que completa hoje 70 anos. No apartamento do Bairro Sion, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, a senhora de lucidez impressionante guarda, com o mesmo carinho, as cartas enviadas do front por um tenente francês, de quem se tornou madrinha durante o conflito, embora sem nunca terem se encontrado. Em muitos países, haverá, até domingo, celebrações para lembrar a rendição da Alemanha e o Dia da Vitória.

Formada em história, em cursos na Itália, Portugal e Argentina, autora de sete livros e de memória prodigiosa – capaz de se lembrar de datas, nomes e lugares instantaneamente, sem recorrer a documentos – Marina é dessas figuras raras de se conhecer, pois reúne vivências, conhecimento e bom humor. “Veja só a minha idade, meu Deus”, comenta baixinho com um sorriso, para emendar em recordações vindas diretamente da Europa, na década de 1930, quando a família morou acompanhando o pai, o embaixador no Vaticano José Bonifácio de Andrada e Silva (1871-1954). “Papai era sobrinho-neto do Patriarca da Independência do Brasil”, conta numa referência ao antepassado ilustre de mesmo nome (1763-1838).

Marina Andrada aos 17 anos(foto: FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Marina Andrada aos 17 anos (foto: FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Nascida na Chácara do Carmo, em Barbacena, na Região Central, Marina morou na Itália dos 8 aos quase 20 anos, quando a Alemanha estava mergulhada no nazismo, sob comando de Adolf Hitler (1889-1945), a Itália, no fascismo de Benito Mussolini (1880-1945) e o mundo em sobressalto com a iminência dos combates. “Quando a guerra começou, foi uma coisa de louco. Um dia estávamos em Roma e presenciamos uma grande movimentação, com aparato militar. Eram Hitler e Mussolini, juntos, chegando para discursar em praça pública”, conta a viúva que teve cinco filhos, dos quais três estão vivos, quatro netos e quatro bisnetos.

De Mussolini, que “todo mundo chamava de Duce”, a mineira fluente em três idiomas – francês, italiano e espanhol – chegou perto. “Naquela época, a garotada na Europa gostava muito de Hitler e do Duce, até eu, que não tinha nada com isso. Mas papai e mamãe não gostavam deles de jeito nenhum. Certa vez, almoçávamos, em família, no restaurante de um hotel romano, quando o secretário-geral do Partido Fascita, Achille Starace (1889-1945), entrou com acompanhantes e viu a bandeira do Brasil na nossa mesa, como era comum na recepção a pessoas do corpo diplomático. Starace cumprimentou papai e foi se sentar. Fiquei inflamada ao ver aquele homem com suas botas, parecia um artista”. Ao ver o entusiasmo da filha, o pai passou-lhe um pito: ‘Comporte-se, menina!’”

Fotografia do tenente Bruin Buret(foto: FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Fotografia do tenente Bruin Buret (foto: FOTOS: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)


ANEL Mais perto ainda de Mussolini, ela chegou por causa de um anel com a efígie dele, jovem e com o capacete militar, e que não tirava do dedo. “Era muito bonito, minha manicure não se cansava de admirá-lo. Tanto que contou para Mussolini em carne e osso, para quem também fazia as unhas. Ele fez o convite para que a jovem brasiliana fosse conhecê-lo, mas mamãe ficou apavorada, quase teve um chilique e não permitiu mesmo”, diverte-se Marina, explicando que esses fatos se passaram em 1938, a um ano de explodir o conflito que deixou mais de 50 milhões de mortos e envolveu a maioria das nações, incluindo as grandes potências, divididas entre o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e os Aliados, notadamente União Soviética, Estados Unidos e Inglaterra. No total, foram mobilizados mais de 100 milhões de militares.

“É uma data para se lembrar e celebrar, de forma que não ocorra novamente”, afirma o professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto. A guerra terminou na Europa e continuou no Pacífico Sul, só chegando ao fim em agosto de 1945, com a rendição do Japão e destruição de Hiroshima e Nagasaki, por bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos.

Madrinha, cigarros e balas


Depois de afagar a cadelinha Penélope, que insiste em brincar na sala, Marina Andrada mostra sobre a mesa de jantar um quadro de vidro com vários documentos e envelopes. “Ele fica ali na parede, mas tirei para mostrar para vocês”, conta ao repórter. Com os olhos mais vivos, e agora usando óculos, ela aponta as cartas que recebeu do tenente Bruin Buret, da Companhia de Engenheiros do Exército francês. Num ponto em destaque, em três registros em preto e branco, o militar aparece sozinho, “quando estava perto da Catedral de Chartres”, com o motorista e na companhia do cachorrinho mascote Kody. 

A amizade por escrito começou quando a jovem, em férias na Fazenda do Belém, de sua família, em Barbacena, recebeu uma carta da sua “professora permanente de francês” Olga Rey – “pronuncia-se Reí, viu?”, avisa. Na correspondência, a mestra residente no Rio de Janeiro explicava que a Embaixada da França lhe pedia para encontrar quatro garotas para ser madrinha de combatentes franceses. “Estava sentada num galho de laranjeira, quando a carta chegou à fazenda trazida no carro de boi. Na mesma hora, aceitei, ao contrário das minhas primas Vandinha, Vitória e Maryse que responderam não, pois daria muito trabalho”, recorda-se. 

Ser madrinha significava mandar cigarros, balas e enviar cartas para o tenente Buret, de 35 anos. “Em 8 de janeiro de 1940, ele me escreveu respeitosamente me chamando de mademoiselle (senhorita) e só muito depois pediu licença para me chamar de chérie Marina na saudação inicial e de você no texto”, diz a historiadora, explicando que o tenente não podia fazer referências à guerra. “Não posso responder perguntas na área militar”, escreveu ele, que, às vezes, não conseguia esconder a tristeza. “Nós estamos na véspera de uma grande batalha. Talvez muito próxima”, acrescentou o francês, que conseguiu deixar aflito o coração da brasileira.

SEGREDO 
“Dei para rezar para que nada lhe acontecesse. Meu irmão falava que era paixão, ia dar romance, mas não era nada disso. Já tinha namorado, mantive essa história meio em segredo”, revela. Marina passa o dedo sobre o vidro e vai traduzindo as frases em francês. “Contei numa carta sobre a Fazenda Belém, ‘onde tudo corre bem’, conforme dizia papai, e falei das orquídeas subindo pelas árvores. O tenente ficou impressionado, disse que eram palavras mágicas, e não conseguia imaginar isso na França. Do Brasil, não conhecia nada, segundo explicou na segunda carta. Mas me pedia para felicitar as amigas brasileiras que trabalhavam pelos soldados franceses”.

O tenente morreu em combate, na Batalha das Ardenas (Ardennes, em francês), e só muito tempo depois Marina ficou sabendo. “Ele parou de escrever até que fiquei sabendo que todos os franceses tinham morrido ali”. Mais uma lembrança vem de 19 de abril de 1940: “O inverno termina, mas a chuva continua; a neve, também (...) não fique triste, estou onde posso me deslocar confortavelmente, mas não podemos ter fantasias”.

VITÓRIA
Marina volta novamente aos diários para mostrar tudo o que foi registrando, principalmente com o noticiário no rádio via ondas curtas. Em 4 de junho de 1944, na sua casa no Bairro Botafogo, no Rio, a jovem registrou e desenhou o vê maiúsculo em vermelho: “Roma foi libertada pelas tropas, está nas nossas mãos Graças mil vezes, graças a Deus. Que ótima notícia a de hoje. Os aliados em Roma, a cidade santa, a primeira capital europeia libertada”. No dia 8, ela pregou a folhinha do calendário, para, no dia seguinte (a data é comemorada em Moscou em 9 de maio) demonstrar a explosão de alegria. “Ontem o dia foi, por excelência, extraordinário e cheio de peripécias”, lê Marina em voz alta, com um profundo senso de história e crença de que tais páginas não podem mais se repetir. (GW)

 


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