O transporte clandestino de passageiros avança sem controle nas estradas de Minas, já supera a frota legalizada, causa prejuízo aos cofres públicos e às empresas autorizadas e põe milhares de passageiros em risco de acidentes e mortes. Enquanto os transportadores legais reduzem linhas e perdem veículos aposentados pela idade, os piratas do sistema paralelo, os chamados perueiros e piolhos, tomam conta de cidades inteiras, principalmente no Norte de Minas, onde o problema é mais grave. A estimativa do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG) é de que chegue a 20 mil o número de veículos irregulares circulando no estado, 21% superior à soma da frota legalizada, de 16.470.
A situação tende a piorar, pois a legislação vigente vai retirar a partir do ano que vem 586 fretados com mais de 15 anos de fabricação. O volume desses veículos chega a 7% (568) dos 8.470 registrados no DER. O setor e os sindicatos já avisaram que não serão capazes de repor as perdas com rapidez, o que abre espaço para os irregulares. O serviço é muito importante, principalmente no interior, onde estudantes, profissionais, servidores públicos e a população em geral dependem das linhas. “Os clandestinos estão destruindo o transporte regular nessas cidades. Eles competem com o serviço regulado pelo estado, oferecendo horários e preços mais atrativos. As empresas vão levando prejuízos e extinguem linhas. Aí, o irregular mostra sua face: começa a fazer os horários que quer e a cobrar quanto quiser”, alerta o diretor de Fiscalização do DER, João Afonso Baeta Costa Machado.
O doutor em engenharia de transportes e diretor da consultoria ImTraff, Frederico Rodrigues, avalia que a brecha da idade estimula a proliferação do transporte irregular. “A demanda vai aumentar os clandestinos. Isto é ruim para população, porque é um serviço de menor qualidade e de insegurança”, considera.
As operações da Polícia Militar Rodoviária (PMRV) e do DER aumentaram em 70% os flagrantes de perueiros em 2011 em relação ao ano anterior. Foram 3.334 e 1.971 registros, respectivamente. No ano passado, de acordo com o DER, foram apreendidos 800 veículos, entre táxis, micro-ônibus e ônibus, resultando no desembarque de 16 mil passageiros e em multa aos infratores, que têm seus carros apreendidos.
Para fugir da fiscalização, perueiros estão trocando vans pelos carros de passeio. Na tarde de ontem, a média para cada 10 carros de aluguel que paravam em um ponto de embarque da BR-040, no Bairro Kennedy, em Contagem, na região metropolitana, era de apenas dois ou três ônibus. Há vans e outros veículosde passeio antigos e em mau estado de conservação.
Pela manhã e no fim da tarde, quando muitos estão a caminho ou voltando do trabalho, a BR-040 fica lotada de perueiros. Eles ocupam pontos de ônibus. Os coletivos, muitas vezes, não têm onde parar. Em horários de pouco movimento, vários descansam na região dos motéis da 040 com o Anel Rodoviário, no Bairro Califórnia, Noroeste de BH.
Até taxista de Sete Lagoas faz transporte clandestino. Eles param nos pontos e pegam passageiros no grito. “Sete Lagoas, R$ 14, preço do ônibus”, grita um deles. Um Santana branco passa logo em seguida e o motorista anuncia: “Sete Lagoas, R$ 12,50”. Um Ducato, com placa de Ribeirão das Neves, também leva passageiros para Sete Lagoas, mas por R$ 12.
Em frente à Ceasa, em Contagem, perueiros fazem fila depois das 15h, quando muitos trabalhadores começam a sair do local. Vários clandestinos chegam a circular dentro da Ceasa e param próximo à portaria de saída, junto a uma passarela, ao lado do ponto de ônibus. Não demora muito e eles ficam lotados. Quatro rapazes seguiram espremidos no banco traseiro de um Uno.
O ritmo é frenético. Uma van quase foi atingida por um caminhão em alta velocidade ao retornar para a pista. Ainda em frente à Ceasa, uma Sprinter ficou parada 10 minutos e uma moça atraía passageiros no grito. Deu tempo para uma mulher comprar um par de meias por R$ 1 no camelô e um churrasquinho na barraca ao lado.
Assim como as peruas, o comércio também é ilegal no entorno da Ceasa. Os camelôs são solidários com os perueiros e fazem o alerta da presença do fotógrafo do EM. Um motorista, em tom de ameaça, diz que seus colegas estão retornando para saber de que se tratava. Muitos que embarcam levam sacos de laranja, batata e outras compras feitas na Ceasa. A passageira de uma Sprinter não tinha espaço nem para abrir o jornal. A auxiliar de financeiro Stefany Braga Oliveira, de 19 anos, tomou medo de pegar perueiro depois que a prima foi assaltada. “Dois passageiros da van sacaram armas, renderam todo mundo e mandaram o motorista seguir para a represa Várzea da Flores. Roubaram e abandonaram todo mundo no meio do mato. Minha prima só ficou com o celular, que escondeu no sapato”, conta Stefany.
Viagens para compras
Os táxis sem autorização para o transporte intermunicipal dominam o Norte de Minas. Ao lado da Praça de Esportes, no Centro de Montes Claros, a longa fila de táxis dá uma ideia da quantidade de veículos que fazem o serviço irregular. A fiscalização aparece raramente. “Há cerca de 1,7 mil táxis fazendo transporte clandestino nas estradas do Norte de Minas”, revela o advogado Vitor Marcondes Albuquerque, que trabalha para empresas concessionárias do transporte intermunicipal.
Em diversas cidades, “empresas de turismo” fazem semanalmente o que classificam como “viagens para compras” a BH, na verdade um serviço informal com preço da passagem menor do que o das linhas regulares. “É um tipo de transporte clandestino. É venda de passagem para quem quer viajar para a capital, independentemente da finalidade da viagem”, afirma Albuquerque. Segundo ele, já foram protocoladas na Justiça cerca de 40 ações contra empresas e pessoas acusadas do transporte clandestino. Pelo menos 80 ônibus fazem o transporte irregular no Norte do estado “pegando passageiro em qualquer lugar”, diz.
Por conta dos prejuízos, empresas de linhas regulares que atendem pequenos municípios do Norte de Minas deixaram de prestar o serviço. “Elas não suspenderam o serviço de vez por apelo dos moradores. No município de Lagoa dos Patos (de 4,4 mil habitantes), a empresa concessionária chegou a paralisar a linha para Montes Claros”, disse. Situação semelhante ocorre na linha Montes Claros/ Francisco Dumont (de 4,8 mil habitantes).
Análise da notícia: Fiscalização omissa - Paulo Noqueira
É fácil e cômodo responsabilizar passageiros pelo aumento do transporte ilegal nas estradas. Se há demanda, há veículos clandestinos em circulação, mesmo porque os passageiros estão literalmente na linha de frente do problema. É claro que o ideal, pensando em segurança e cidadania, é que todos evitem os clandestinos, principalmente devido ao risco de acidentes por falta de manutenção, por exemplo. O melhor seria coibir a oferta do serviço com fiscalização rigorosa nas cidades e nas estradas. Mas, além da ineficácia da fiscalização, o que se vê é uma impressionante omissão, como ocorre em Montes Claros, onde os veículos que fazem o transporte clandestino partem livremente de plena praça pública sem nenhuma repressão ou constrangimento em desrespeitar a lei.
Depoimento: "Tão perigoso quanto uma roleta russa" - Pedro Ferreira
Pegar o transporte clandestino é tão perigoso e assustador quanto roleta russa. Na tarde de ontem, embarquei num Voyage ano 1989, em péssimo estado de conservação e por alguns instantes achei que entraria nas estatísticas de morte da BR-040, sentido Sete Lagoas. Além do carro velho, o motorista dirigia em alta velocidade e o volante parecia que iria soltar a qualquer momento nas mãos do motorista. O carro tinha problemas claros de suspensão e alinhamento. O relato do condutor deixou claro que qualquer um pode ser motorista, até mesmo alguém inabilitado. Ele trabalha na Ceasa e para bancar o combustível sai parando de ponto em ponto de ônibus e gritando seu destino. Paga a gasolina e ainda sobram R$ 8 no bolso, segundo ele. A alta velocidade do carro pareceu não incomodar as três senhoras do banco traseiro. O que elas mais queriam era chegar cedo em casa. E o motorista também. Foi impossível medir a pressa dele, pois o velocímetro estava quebrado. Paguei R$ 2 de um posto de combustível a outro e não faltou passageiro querendo ocupar a minha vaga.