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Estado de Minas

Em pleno século 21, número de pessoas obrigadas a viver sem luz em Minas beira 80 mil

Conheça a rotina de quem acorda e dorme com o sol e nem imagina quando isso mudará


postado em 27/03/2012 06:00 / atualizado em 27/03/2012 07:23

A casa modesta de Ailton Acácio da Paixão - à noite, só o céu tem pontos iluminados(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
A casa modesta de Ailton Acácio da Paixão - à noite, só o céu tem pontos iluminados (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
 

Catas Altas – Acordar com o galo cantando, moer o café e passá-lo no coador de pano, almoçar um feijãozinho preparado no fogão a lenha, trabalhar diante da mata nativa, dormir pouco depois de o sol se pôr. O cenário poderia ser o idealizado por muita gente que atravessou um dia intenso de trabalho, trânsito e problemas na metrópole. Mas, para Ailton Acácio da Paixão, de 41 anos, a lida no campo é uma vida sofrida, complicada pela falta de energia elétrica. Para conhecer uma realidade que indica atraso impensável para muita gente que vive imersa na era da informação, o Estado de Minas acompanhou a rotina desse homem, que em pleno século 21 vive sem luz na comunidade chamada Abertura, no município de Catas Altas, Região Central de Minas, a 120 quilômetros da capital. O cotidiano dele é o espelho do que enfrentam cerca de 20 mil famílias espalhadas pelo estado, que, assim como Ailton, vivem dependendo do sol, do lampião e do esforço físico para as tarefas diárias. Considerando a média familiar de quatro pessoas por moradia, é como se uma cidade do porte de Nova Lima, na Região Metropolitana de BH, vivesse no escuro.

A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) informa que entre os 20 mil domicílios a serem beneficiados estão novos pedidos de ligação e demandas remanescentes do programa federal Luz para Todos. Não há, porém, previsão de quando toda essa gente será atendida, já que a nova fase do programa não foi autorizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e pelo Ministério de Minas e Energia. “A Cemig está pleiteando a inclusão do estado na quarta etapa do programa”, informou a empresa, em nota.

Má notícia para Ailton da Paixão. Ilhada em um vale cercado por pés de eucalipto, a propriedade é identificada pela placa na porteira. Quem chega de carro não é anunciado por campainha, mas por latidos. São Honda, Leste e Barão. Como não dá nem para sonhar com alarme, são eles que defendem os dois alqueres de Ailton. Não fosse pela fumaça que sobe da casa de pau-a-pique, não seria de se imaginar que alguém morasse ali.

 

 

SEM LÂMPADAS - Ailton cozinha com lenha, à luz de lampião(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
SEM LÂMPADAS - Ailton cozinha com lenha, à luz de lampião (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

 

Mas Ailton resiste e, no terreno fértil, não só vive, como tira o sustento de toda a família – a mãe, a mulher e os sete filhos, dos quais ele faz questão de citar os nomes. “Anota aí: Cássia Severina, Joelmir Santos, Rafael Rodrigo, Claiton Inácio, Beatriz Lopes, Jaíne de Fátima e João Abadi. Todos de sobrenome Paixão”, enumera. O carinho é grande, mas a famíla foi obrigada a se separar por causa da falta de luz. “Não é fácil viver assim. Eles moram com a minha mãe, no Fonseca, um arraial onde as condições são melhores”, lamenta.

“Vamos entrar”, convida Ailton. Na casa de cozinha, quarto, banheiro e um cômodo onde ele guarda mel das colmeias que mantém, chamam a atenção a mesa comprida de madeira, panelas de alumínio areadas sobre a pia limpa, chão batido bem varrido e, claro, fogão a lenha aceso. E duas curiosidades, que ele mesmo aponta. “Tá vendo essa boquilha dependurada? Já cheguei a usar lâmpada recarregável, mas a bateria não dura nada. Desisti. E esse aqui é meu celular, que carrego quando vou à cidade. Não tenho luz aqui, mas o telefone chega a pegar em alguns lugares”, diz, antes de soltar a gargalhada.

Como no passado

A conversa segue à medida em que ele mói os grãos de café colhidos no quintal. “Esse moedor de ferro é antigo. Foi da minha mãe”, recorda Ailton. Feito o trabalho que lhe traz boas lembranças, é hora de passar o pó no coador de pano. “Não saberia fazer de outro jeito. Nem sei o que é cafeteira”, afirma. A próxima refeição preparada como faziam seus antepassados é o almoço, que começa a ser feito às 8h.

Enquanto as panelas estão no fogo – e terão de ficar por um longo tempo, para chegar no ponto – é hora de conferir os estragos que os coelhos fizeram na horta à noite. Não é à toa que eles se tornaram frequentadores assíduos. Tem alface, couve, cebolinha, alho, rúcula, cenoura, beterraba, almeirão, pimentas, inhame... Ailton aproveita para colher o que usará no almoço. “Tenho que fazer tudo isso todo dia, porque não tenho geladeira para guardar. Tudo se perde de um dia para o outro”, suspira, esfregando as mãos calejadas.

 

SEM MOTOR - Engenho produz pouco, pois faltam máquinas(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
SEM MOTOR - Engenho produz pouco, pois faltam máquinas (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
 

 

À tarde, as atividades se alternam, de segunda a sexta-feira, entre colmeias, o galinheiro, a horta, o pomar, o canavial, o bananal, o mandiocal, a plantação de milho, a limpeza do terreno. Achou muito? Pois ele ainda construiu três grandes fornos de barro, onde a cada sete anos transforma seus cerca de 4 mil pés de eucalipto em carvão. E nada de máquinas. Tudo no braço. Mas o que Ailton queria mesmo era produzir cachaça. “Desisti, porque preciso de energia elétrica. Já tenho o engenho, mas faço pinga por esporte, só para agradar amigo. Preciso de luz para produzir em escala.”

Batem 18h e quem informa o horário é a escuridão. Dentro de casa, já é preciso acender o lampião a gás. Ailton não tem dificuldade alguma, seja na claridade, seja no breu. Para quem não está acostumado, o medo chega com a escuridão. Não para o agricultor. “Sozinho, aqui, a única coisa de que eu tenho medo é de gente”, afirma. A falta de luz, naquele momento, só tem uma vantagem: apreciar o céu. Na noite de Ailton, e de uns 80 mil mineiros, são as únicas luzes que brilham. E não está escrito nelas quando a energia vai chegar.

 

SEM GELADEIRA - Colheita tem de ser diária, para evitar perdas(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
SEM GELADEIRA - Colheita tem de ser diária, para evitar perdas (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)


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