(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

A vida na lama de quem sobreviveu à enchente

Agricultor que perdeu a safra de manga e até a roupa do corpo em Guidoval é retrato de como a enchente afetou área rural da região


postado em 10/01/2012 06:00 / atualizado em 10/01/2012 06:38

Não tenho nem fala. É muita tristeza num tempo só - Antônio Rombaldi, 71 anos, lavrador(foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)
Não tenho nem fala. É muita tristeza num tempo só - Antônio Rombaldi, 71 anos, lavrador (foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)

 

Quem é o homem absorto, sem sombra, que vaga em rua podre de lama e restos no vilarejo de Vargem Alegre, em Guidoval? De chapéu sob o céu acinzentado, braços inquietos, ele veste camisa do Brasil, calça social e, numa das mãos, tem guarda-chuva empenado, fechado; na outra, rádio de pilhas sujo de barro. “É ‘seu’ Antônio, coitado. Moço, a gente tem de ajudar ele”, diz a mulher sofrida, Aparecida, de 50 anos, dona de casa empenhada em auxiliar o vizinho, que, como ela, perdeu até a roupa do corpo com o “tsunami” de lama que, nas primeiras horas de 2012, arruinou a pequena área rural da Zona da Mata. ‘Seu’ Antônio tem ao pé, igualmente perdido, gatinha branca encardida de orelhas negras. O bichinho o acompanha de um lado para o outro e, vez por outra, esfrega-se em suas botinas surradas. O homem está parado diante de casinha destruída, na Rua Geraldo Marques da Silva, 58, com barro saindo pelas janelas. ‘Seu’ Antônio? “Sim”.

A ruela fede a manga estragada e bichos mortos em estado de decomposição. Pelo chão, a sumir de vista, tonelada de manga ubá, perdida, vinda do depósito de frutas destruído à margem do Rio Xopotó, que seguiria para centrais de abastecimento de Minas Gerais e fábrica de suco de Astolfo Dutra, cidade vizinha. O homem, desolado, é retrato da melancolia que comove e aturde em Guidoval. Antônio Rombaldi, de 71, de aparência bem mais envelhecida , lavrador, na tarde de 2 de janeiro foi salvo em bote improvisado por vizinhos voluntários. Com a água a subir rapidamente pelo corpo franzino, viveu horas de desespero sobre telhado de barracão bambo, “balançando que nem caixote”. Aposentado, ainda lavrador, nascido em Miraí, havia acabado de enterrar a mulher, Alaíde de Almeida, que passou 18 dias em CTI, vítima de infarto.

E o coração, seu Antônio? “Não tenho nem fala. É muita tristeza num tempo só”, diz com a cabeça na capela mortuária João Paulo II, onde velou a companheira. “Minha mulher, coitada, era muito ruim de ideia. Toda vez que nascia um menino aqui em casa ela dizia que a gente tinha que dar. Cinco eu consegui segurar, mas uma menina não teve jeito.” Com a fala confusa, olho azul como o da gatinha que tem aos pés, o homem reabre ferida antiga, quando a mulher deu uma de suas filhas para família do Rio de Janeiro. “Ela foi com o nome de Eliesse, mas, lá no Rio, eles mudaram o nome dela. Ela foi com cinco meses, mas tem registro e tudo no cartório daqui. Ela deve ter uns 32 anos, por aí. A gente não esquece e não perde a esperança de encontrar, né... a gente tá vivo”, suspira, tímido, pela boca miúda. Dona Aparecida ajuda a mudar de assunto e conta a história da gatinha de olho azul: “Bonitinha demais, não é? Tadinha, foi a única que sobrou. Na enchente, a mãe dela se acabou com os cinco irmãozinhos”.



Aperto

O velho lavrador mantém o olhar longe em direção à casinha, cheia de lama, restos e história. Ali, com ele, morava uma das filhas que viu crescer, Eliene, de 34, mãe de sete crianças. Volta ao assunto da família em pedaços: “Antes dos 15 anos, essa minha filha teve um menino. Mas, hoje, só tem dois com ela. Os outros ela deu. Não pude fazer nada, porque estava muito doente e desempregado, passando por um aperto muito grande.” Diz que a filha, agora, é nova mulher, “de muita força”, e que trabalha ajudando a cuidar de idosos.

Seu Antônio tem passado os últimos dias na casa da irmã, Maria, de 58, no Bairro Santana, a mais de uma hora dali, por passagem difícil, a pé. Num fio de esperança, conta que acaba de conseguir alugar uma casinha por R$ 160 na Vila Trajano, lugarejo mais próximo, para ele, a filha e os netos, Bruna, de 6, e Bruno, de 8. Porém, não tem nada para colocar no barracão. O radinho e o guarda-chuva foram encontrados pelo caminho sem sombra, cheio de tristeza e destruição. Dona Aparecida, de fé inabalável, pontua: “Ficou a vida, né!?”


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)