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Estado de Minas entrevista/Renata Araújo - 48 anos, Psicanalista e artista

Sabendo o que quer

Cheia de energia, a artista e psicanalista conseguiu realizar seus desejos e abrir projeto de biblioteca itinerante para o sertão do norte de Minas Gerais


06/12/2020 04:00

(foto: Mônica Machado/divulgação)
(foto: Mônica Machado/divulgação)


Renata Velloso Araújo Donato, mais conhecida como Renata Araújo, é uma mulher múltipla. Decidia, sempre fez o que quis. De criança tímida, se transformou em adolescente extrovertida, participativa, e apesar de ter atuado por um tempo ao lado do pai, Eduardo Araujo, na rede de drogaria mais famosa da cidade, percebeu que ali não era seu lugar. Determinada, seguiu seu sonho e buscou realizar seus desejos. Especializou-se em psicanálise, e deixou aflorar seu lado artístico que profissionalizou há três anos. Escreve, dança, canta, faz performances e também criou o projeto Letras pelo Sertão, que leva a literatura para o Norte de Minas. Tudo isso sem descuidar de seu marido e seus três filhos. Energia para todo este trabalho ela tem de sobra, além de uma simpatia e alegria contagiantes.
 
Fale um pouco da família.
Nasci em Belo Horizonte, sou filha mais velha de Sandra e Eduardo Araújo, e tenho três irmãos. Perdi meu pai muito cedo. Ele era empresário e morreu, há 16 anos, aos 60 anos, de mielo fibrose, em apenas 20 dias. Eu tinha uma relação muito próxima com ele. Na época em que ele faleceu eu lancei meu primeiro livro, Alma de vidro. O livro trata da questão do luto, porém, nada direcionado a ele, mas às coisas vividas, o que foi preciso trazer no dia a dia e na escrita para tentar fazer uma bordagem para a questão da morte. Foi uma das vivências mais difíceis que eu tive, mas a escrita foi uma forma de tratar isso, foi uma saída para eu dar conta desse luto. Tive uma segunda mãe, minha mãe preta, que ficou conosco 46 anos, a Maria Lúcia, que chamamos de Gá, que me ensinou a sambar aos 3 anos de idade. Ela sempre foi uma figura muito importante na minha vida, e é até hoje. Essa coisa do ritmo já estava forte em mim, desde a infância. Aos quatro anos fui dançar balé e fiz isso a minha vida inteira. Sou bailarina também.
 

"É um projeto aberto, em constante construção e evolução. Trata-se de uma biblioteca. Peguei uma casa da fazenda e montei uma biblioteca para as crianças da região"

 

Você era uma criança extrovertida?
Até meus 12 anos era muito introvertida. Estudava no Colégio São Tomás de Aquino e lembro que era muito tímida. Nos mudamos para a Pampulha e fui estudar no Pitágoras e essa coisa inverteu, porque naquela época lá tinha danças, concorrência, e entrei nisso tudo. Tinha concurso Garota Pitágoras, e eu participei e ganhei.

Começou a descobrir seu lado artístico através da dança?
Foi, mas isso foi só a posteriori. A gente só consegue dizer dessa questão artística depois que você vai vivenciá-la para poder nomeá-la. Ah, era aquilo! É um percurso todo para voltar e falar: Era. Na dança eu recordo disso, mas lembro que fiz balé no Compasso, com Ana Lúcia Vieira e Vitória Alvim, depois fui para o Núcleo Artístico estudar com a Marjorie Quest. Depois fui para o Maurício Tobias, uma pessoa que eu guardo no coração, ele me ensinou presença de palco. Trouxe ele para participar de uma apresentação minha no Baretto.

E a música?
Ouvia muita música. Viajávamos de férias para a colônia do Sesc. Era longe, e antes de ir já ficava preocupada com que música ouviríamos no caminho. Naquela época era walkman, e ficava dias selecionando as músicas que meu pai gostaria de ouvir no caminho e passava as noites gravando as fitas cassetes. Com isso passava as noites ouvindo músicas de todas as épocas. Meu pai amava música, o Célio Balona vivia lá em casa.

Sua musicalidade foi herdada dele?
Pode ser, mas minha avó paterna, Nylse Velloso tocava piano. Papai também tocava, o piano dele está comigo. Cheguei a tocar um pouco com uma mulher chamada Maria Luiza, que morava na rua. Era lindo, ela morreu nova, aos 40 anos, de lúpus. Lembro de ela tocando “Nunca”, “Ronda”. Meu pai gostava muito de Bossa Nova, Tom Jobim, Frank Sinatra, Gal Costa, que é o meu repertório hoje. Me recordo de já estar com interpretação. A dramaturgia já estava ali.

Você é assim determinada?
Sou. Só fui entender isso mais tarde, em análise. Sou extremamente focada.

O que te levou para a psicanálise?
Eu já dançava, escrevia, desenhava. Quando fui fazer o vestibular tive que pensar um pouco, porque tinha a questão da empresa. Meu pai estava à frente da Araujo. Fiquei entre Administração e Psicologia. Eu sempre quis entender o ser humano. A busca do querer saber. Fiz vestibular para os dois cursos e passei nos dois, mas não dei conta de sustentar o meu desejo. Matriculei nos dois. Fiz um de manhã e outro à noite, mas acabei abrindo mão da psicologia. Formei em administração e fiz pós-graduação em marketing pela FGV.

Chegou a trabalhar na Araujo?
Sim. Separei produtos no CD, fui para organizações e métodos. Tudo foi muito válido. Gostava, era feliz, mas meu fluxo de caixa não fechava. Dá para entender isso. Quando percebi que eu estava atendendo as atendentes, como psicóloga, vi que meu lugar não era ali. Entreguei meu certificado de administração para o meu pai. Ele perguntou em que poderia me ajudar e disse que queria estudar psicanálise. Fiz a especialização pela Fumec, e estudo até hoje. Participei e participo de muitos seminários. Mas minha escrita sempre foi muito poética. E estudo há 22 anos, ininterruptamente. Tenho consultório e atendo até hoje.

Você consegue administrar todas essas áreas de atuação?
São várias áreas de desejo, né. É a música, a dança, a literatura e a psicanálise. Mas temos que conseguir, para nos realizar.

Quando você fez psicanálise, se sentiu completa?
Na hora que fui para a psicanálise o lado da dança ficou em stand by durante um bom tempo.

E quando o lado artístico aflorou novamente?
A música sempre esteve presente de uma forma muito amadora. Cantei na festa de 50 anos do meu pai. Nem sabia que eu era afinada. Sempre que tinha reunião eu acabava cantando. Um dia um amigo do meu marido Nadim Donato, perguntou por que eu não entrava para uma aula de canto, porque sempre pegava microfone para cantar. Eu cantava de atrevida. Foi o estímulo que eu precisava. Tem três anos apenas que todo este profissionalismo artístico começou. Entrei para a aula com o professor Sérgio Moragas.
 
Quando conheceu o Nadim e quando se casaram?
Conheci o Nadim quando eu tinha 22 anos, e me casei três anos depois. Aos 26 tive minha primeira filha, Camila, que hoje tem 22 anos, e faz psicologia. Tenho também o Rafael, com 20, que faz administração no Ibmec e Marcela, com 12, que tem o lado artístico bem aflorado. E tenho o meu enteado, porque o Nadim já tinha um filho do primeiro casamento.

Quando começou a fazer shows?
Faço aulas três vezes por semana. O Sérgio levava os alunos para uma pizzaria no Grajaú para os alunos treinarem. Depois teve um show no Vinil. Éramos três para apresentar. Eu fui a última e já fui com meus poemas. Ali estava abrindo as portas para o que eu queria. E a primeira vez eu apresentei um show estruturado. Depois procurei o Fasano para propor uma apresentação no Baretto e lotei a casa.

No início as performances ainda não tinham entrado no show?
Não. Claro que tinha uma bossa, um gingado. Mas depois eu fui entendendo a linguagem, o conceitual. A performance mais trabalhada e mais elaborada. Meu corpo sempre foi um corpo falante, mas eu não tinha sustentação, não tinha entendimento, por isso ele foi o último que entrou em cena. Percebi que não tinha como eu ir sem ele, ele faz parte de mim. Precisei dar conta dessa linguagem e assumi-la. É um corpoema. Não tem como ficar fora. Eu escrevo os poemas para cada show. Não é um show qualquer, eu tenho um tema. O próximo é o Chegada, e escrevo vários poemas, conexos. E vou trabalhando as músicas. Este show eu trabalhei o Tupi, que é a origem da linguagem que nos marca. Vou começar cantando O Brasil não conhece o Brasil. Tem toda uma conexão de pensamento.

Conseguiu realizar o seu desejo?
É preciso ter coragem para bancar um desejo, e é isso que eu quero dizer para o outro. A vida é curta. Temos que ir atrás do que desejamos de fato. A coisa mais difícil da vida é a gente buscar o desejo e bancá-lo. Se a pessoa não sabe o que quer, vai fazer uma análise.

Você disse que tem sede do saber e do conhecimento. Ainda estuda?
Muito. Fiz curso de história da arte com o professor Luiz Flávio, mitologia, filosofia. Para entender, através da arte, o contemporâneo. Gosto das coisas com conteúdo, preciso entender tudo na sua profundidade. Meu primeiro show se chama O abissal de mim, muito profundo, e paralelamente ao show, escrevi um livro, com o mesmo título. Fiz várias viagens culturais com o Luiz Flávio. Isso tudo me fez trazer a questão da leitura conceitual.

E a literatura?
Lembro eu ainda criança, na casa do meu avô materno. Ele lia muito, porque não teve muito estudo, e com isso adquiriu uma paixão por leitura. Ele me ensinou a amar os livros. Colecionava livros. Lembro da cena de eu, entrando na biblioteca dele – descrevo isso em um livro que está pronto para ser lançado –, e cheirando os livros. Como você pode ver, tudo na minha vida está interligado. A dança, a música, a voz, a literatura. Tive outro grande parceiro, além do meu avô, claro, que é o Alencar, da Quixote. Ele me mostrava os livros que achava que era importante e interessante para eu ler. Porque eu li muito, mas ele me apresentou grande e excelentes escritores, desde os clássicos até os atuais. Minha imersão na leitura foi antes de eu entrar no campo da arte. Já atendia no consultório, mas estava mais tranquila na época. Como você pode ver, tenho muitas frentes de desejo. Estar na literatura, no corpo, na voz, na dança, na arte, na escrita. Fiz até oficina de psicanálise e teatro com o Antônio Quinet.

Como nasceu o Projeto Letras pelo Sertão?
Começou com a escrita do livro Abissal de Mim. Tive este despertar para o sertão, porque não é só o sertão físico, é o “Ser Tão”. São vários questionamentos usando tanto o próprio sertão que vira personagem, e ele entende que ele não é tão “ser tão”, quando ele se vê frustrado, manco porque as pessoas estão com fome, tem a seca. Está enlutado. Isso remete a questão de cada um de nós. E abordo a questão da morte novamente, como antes as pessoas falavam da morte com mais naturalidade, os mortos eram velados dentro de casa, hoje, tem um distanciamento, um silencio velado, uma dificuldade em tratar da morte. Todos estes questionamentos que eu fiz a partir da morte do meu pai, porque ele falava muito “não me leva para casa”. Mas quando o sujeito tem escolha frente a morte? Onde escutamos de fato o sujeito frente a morte? O que realmente ele quer? Porque eles viram objeto nas mãos da medicina, dos hospitais, em um ambiente frios de um CTI, isolados da família. São várias passagens.

E o projeto?
Sempre tive o desejo de ter uma biblioteca. Sonho que herdei do meu avô. Temos uma fazenda no Norte de Minas, depois do Rio São Francisco. É um cantinho do céu, como dizia meu pai, e passei minha infância, até a adolescência indo para lá. Depois que me casei retomei minhas idas, agora com meu marido e filhos. A convivência com as pessoas da região sempre me cativou, pessoas simples, da terra, com uma sabedoria natural. Gosto de gente. Quando escrevi o livro, a analogia com o Sertão acabou me enraizando ainda mais na região. É um projeto aberto, em constante construção e evolução. Trata-se de uma biblioteca. Peguei uma casa da fazenda e montei uma biblioteca para as crianças da região. Pedi doação de livros para grupo de amigos aqui de BH. Ganhei um caminhão de livros, de temas variados. A biblioteca estava pronta. Fizemos uma seleção, doamos para escolas da região mais livros, porque não cabia. Quero fazer uma biblioteca conceitual para a região. Ganhamos livros clássicos, de coleção capa dura, maravilhosos. Dois meses depois chegou a pandemia, e lá não tem internet. O que essas crianças fariam? Como ficariam sem aula? Com a ajuda de duas professoras, Rosangela e Ivani, muito envolvidas com o projeto, decidimos transformar em “biblioteca itinerante”, levando os livros para a casa das crianças e trocando de tempos em tempos. E pedindo para eles fazerem uma escrita do que achou do livro. O resultado foi surpreendente. Textos, poemas. Um material muito rico. Os pais começaram a ler também. Fiquei dois meses, retornei para BH, e depois de quatro meses, voltei para lá. Os professores ficaram encantados de poderem ter acesso a livros que queriam ler e não tinham acesso.

Quem toda o projeto na sua ausência?
Eles. Faço questão de dizer que o projeto não é meu, é deles, e eles têm que agir. Se eles não entenderem isso e não atuarem, o projeto vai morrer. Eles têm que querer porque é para o interesse deles. Não adiante eu ficar injetando desejo o tempo todo. É preciso que sintam que foi feito para eles e se apropriem da materialidade que foi doada. O andamento e a continuidade dependem deles. Estou aqui como apoio, ajuda e não como a dona do projeto. A última vez que eu cheguei lá apenas avisei que tinha chegado e fiquei quieta, em silêncio. E eles entenderam que a ação teria que ser deles. E eles são guerreiros. A intensão é montar várias casas bibliotecas, em regiões mais afastadas, para facilitar a chegada dos livros a um maior número de famílias. Já estamos fazendo roda de leitura com dramaturgia. E saem coisas riquíssimas. Agora já temos divulgadores mirins que são Letras pelo Sertão, que vão em outras comunidades contar da sua experiência. Eles vão de bicicleta. É lindo. Sou uma apaixonada pelo projeto. Já até escreveram uma música a partir da leitura.

Chegou a ir na casa das crianças?
Sim, fui em várias. Desde quando começamos a distribuir os livros. Eu tenho muita facilidade de chegar no outro, então descia na casa das pessoas, tomava cafezinho com o biscoito da região. Fiz contação de histórias, usei de todas as ferramentas que eu tenho para despertar o desejo de querer saber em todos eles. Vi que eles tinham o desejo, só não tinham o material. Acabei atendendo famílias, porque não tem como separar todas as minhas áreas de atuação, a psicanalista está ativa o tempo todo. Foi o que eu te disse lá no início, tudo está interligado e tudo junto se completa formando quem eu sou. Ouvi histórias lindas, outras muito tristes, mas é gratificante quando você percebe que conseguiu ajudar e levar o bem. A biblioteca não é só para crianças, é para todo ser que desejar saber.

Como você tem tempo para isso tudo?
Acho que te respondo assim: é porque eu sei da finitude da vida. Em um dos shows que eu escrevi eu disse “Não sei o que pode acontecer quando eu abro as portas de mim, só me cabe o ato de fazer”. E como vai tocar o outro ou não, não me preocupa. 


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