Cena do filme Retratos de fantasmas mostra pessoas fantasiadas no meio da rua

Kleber Mendonça Filho não considera seu novo filme documentário, por trazer 'algo de inusitado e de fantástico'

Cinemascopio/reprodução

'Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.'

'Evocação do Recife', de Manuel Bandeira



“Retratos fantasmas”, novo filme de Kleber Mendonça Filho, une memórias do cineasta e de todos que frequentaram – e ainda frequentam – os cinemas. Da sala de estar do apartamento do diretor, onde ele rodou filmes caseiros, curtas premiados e o primeiro longa-metragem de ficção, às salas de projeção que não existem mais no Centro do Recife, há uma profusão de imagens de arquivo pessoal meticulosamente montadas com sequências de filmes do cineasta e de colegas pernambucanos, como Cláudio Assis e Kátia Mesel.
 
Com estreia mundial em Cannes e exibido pela primeira vez no Brasil na abertura do Festival de Gramado, “Retratos fantasmas” não é um documentário convencional. Como o próprio título indica, há fantasmas na tela. Mas ninguém vai se assustar: todos são fantasminhas camaradas. Nenhuma alma sebosa como os antagonistas de “O som ao redor” (2012), “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2018, com Juliano Dornelles), longas-metragens anteriores de Kleber.
 
“Me incomoda chamar apenas de documentário porque tem algo de inusitado e de fantástico”, conta o diretor ao  Estado de Minas, que narra o longa em primeira pessoa e aparece também como ator. “Acho que eu não atrapalho em cena”, comenta.
 
Originalmente o filme se chamaria “Os cinemas do Centro do Recife” e se concentraria na documentação do desaparecimento de salas que viviam lotadas na segunda metade do século 20 como Trianon, Art Palácio, Moderno... Mas, quando teve de se mudar do bairro onde cresceu e viveu com a mãe, a historiadora Joselice Jucá, Kleber guardou a impressão de que sua estada naquele endereço seria também matéria-prima para um projeto ainda embrionário.
 
“Quando trouxe o apartamento (para a montagem), o filme se tornou muito mais real. Me vi falando de minha mãe, que pode ter me doado o interesse pelo relato da história oral. Me senti literalmente em casa”, conta, admitindo também que a reação fria de amigos ao título que havia escolhido o ajudou a perceber que poderia ir além do registro documental.
 
Cartazes do filme 'Retratos fantasmas' criados para oito cidades

'Retratos fantasmas' ganhou diversos cartazes, que tematizam as salas de rua de São Paulo (criação de Marília Marz), Salvador (Lila Cruz), Fortaleza (Weaver Lima), Rio de Janeiro (Victor Reis). Embaixo, cartazes de Belo Horizonte (de Gustavo Nascimento), Recife (Chico Shiko), Brasília (Diana Salú) e Porto Alegre (Grazi Fonseca)

Reprodução
 
 
Nos sete meses de trabalho com o montador Matheus Farias, surgiu também a “organização elegante” de divisão do filme em três partes: os ternos e hilários registros (eletro)domésticos do lar-locação dos primeiros passos do diretor, o resgate da história dos cinemas de rua da capital pernambucana e a conversão destas salas em templos religiosos.
 
Cada uma das partes é formada por imagens captadas em diferentes formatos e épocas, apresentadas sem didatismo e com vertigem: luz de cinema e luzes da cidade, personagens vivos e pessoas mortas, frevo da terra e o fervor de Sidney Magal, a invocação do fantasma de um cão e a “Evocação” de Nelson Ferreira, um dos ‘hinos’ pernambucanos.
 
A montagem é precisa e preciosa. Contribui para destravar memórias e provocar alguns risos, talvez lágrimas, no espectador.
 
“Foi um trabalho longo, precisou de tempo para eu entender o que seria o filme. Montagem não é lego”, diz o diretor, citando documentários do português Manoel de Oliveira e da francesa Agnès Varda como “amigos imaginários” de seu projeto.
 
 
 
O crítico José Geraldo Couto definiu “Retratos fantasmas” como o “filme mais pessoal e, ao mesmo tempo, mais universal” de Kleber Mendonça Filho.
 
“É uma jornada que parte do apartamento em que ele viveu por 40 anos e se desenrola como um novelo, abarcando a capital pernambucana, o Brasil e o mundo, e enlaçando sempre o individual com o geral”, destacou Couto, em crítica publicada no blog do Instituto Moreira Salles (IMS).
 
 
Com o seu repertório e seu arquivo, o cineasta fez movimento semelhante aos de Steven Spielberg (“Os Fabelmans”), Pedro Almodóvar (“Dor e glória”), Quentin Tarantino (“Era uma vez... em Hollywood), Paolo Sorrentino (“A mão de Deus”), Alejandro Iñárritú (“Bardo”) nos últimos anos, em reação espontânea ao atual estado das coisas.
 
Se o cinema de autor agoniza-mas-não-morre na tela grande por causa das mudanças de hábito provocadas pelo streaming e acentuadas pela pandemia, resiste também a partir das lembranças – reais ou posteriormente imaginadas – de seus realizadores e dos que compartilharam a mesma vivência.
 
Por isso, vale a pena assistir a “Retratos fantasmas” em uma sala de projeção. Como o diretor ressalta, não será uma experiência retrô. Quando as luzes se acendem e as portas se abrem trazendo o ar quente e os ruídos das ruas, a música contagiante de Herb Alpert que une a insólita sequência final aos créditos ainda toca na cabeça de Kleber e dos espectadores. O filme continua e o cinema vive.
 
Kleber Mendonça Filho no lançamento de 'Retratos fantasmas' no Festival de Cannes, na França

Kleber Mendonça Filho no lançamento de 'Retratos fantasmas' no Festival de Cannes, em maio deste ano

Patrícia de Melo Moreira/AFP

'Cinema para mim não é plano de carreira. Você vai fazendo o que faz sentido no momento'

Kleber Mendonça Filho, cineasta

 

Wagner Moura e Chico Science nos próximos projetos de Kleber

 
Kleber Mendonça Filho se diz feliz por ter conseguido, com “Retratos fantasmas”, quebrar as expectativas de quem esperava do novo longa-metragem do diretor uma produção ainda mais catártica do que “Bacurau”. “Cinema para mim não é plano de carreira. Você vai fazendo o que faz sentido no momento”. 
 
E o que faz sentido para ele, após o lançamento de “Retratos”, é se dedicar aos dois próximos projetos: “Agente secreto”, longa-metragem ficcional com Wagner Moura, e um documentário com as suas imagens do Recife e da cena musical pernambucana dos anos 1990, com Chico Science & Nação Zumbi, mundo livre s/a e outras bandas do manguebeat.
 
“Eu estava sempre filmando, mas de uma maneira peculiar. Tenho muita coisa guardada e procurei muita coisa que não é minha. Fico achando que o processo para finalizar esse filme vai sair mais rápido”, antecipa.
 
Antes, porém, ele participa do lançamento internacional de “Retratos fantasmas”, inscrito para tentar ser o representante brasileiro na disputa ao Oscar de produção não-falada em inglês. O “documentário” (o diretor acha o rótulo impreciso para definir o novo filme) está em cartaz em 76 salas no Brasil, 13 em Portugal, participa dos festivais de Nova York e Toronto, entra em cartaz em novembro na França e em janeiro nos EUA.
 
Na última semana, Kleber Mendonça apresentou e participou de debates em salas “bem equipadas e com história” no Rio, São Paulo, Brasília, Recife, Fortaleza, Salvador, Porto Alegre, todas com lotação esgotada.
 
“Tem sido muito especial, experiências incríveis que constroem a personalidade do filme. Ainda quero ir a Belo Horizonte”, conta o cineasta.

“RETRATOS FANTASMAS”

(Brasil, 2023, 93 min.) Direção: Kleber Mendonça Filho. Em cartaz no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 16h e 18h30), Ponteio (Sala 4, 14h30, 19h), UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 14h, 16h, 18h, 20h; excepcionalmente neste domingo,27/8, não haverá sessão das 18h)