O bom humor e a inteligência sempre foram a marca registrada de Rita Lee, o que pode ser comprovada em sua autobiografia, publicada pela Editora Globo em 1966. Mutantes, Monja Coen e até a própria morte não escaparam da língua afiada, e certeira, de Rita.
“EPITÁFIO: ELA NUNCA FOI BOM EXEMPLO, MAS ERA GENTE BOA”
“Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão 'Ovelha negra', as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha no obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes virtuais, alguns dirão: 'Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk'. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: 'Thank you Lord, finally sedated'. Epitáfio: Ela nunca foi bom exemplo, mas era gente boa”.ABUSO SEXUAL
“Um dia a máquina de costura Singer de Chesa engasgou e veio um técnico da firma. Me contaram que eu brincava no chão da copa enquanto minha mãe mostrava pro cara onde a coisa estava enguiçada. O telefone tocou, ela saiu para atender. Quando voltou, me encontrou sozinha no mesmo lugar, olhando petrificada para o cabo de uma chave de fenda enfiada fundo na minha vagina, de onde escorria uma gosma vermelha. O filho da puta do técnico fez aquilo e sumiu do mapa. (...) desse dia em diante as mulheres olhavam para mim como a pequena órfã. A dor delas certamente foi muito, mas muito maior do que a minha. Chesa, Balú e Carú guardaram a tragédia como o grande segredo do fim do mundo de todos os tempos. (...) las mujeres passaram a relevar meus desajustes comportamentais. Nunca me castigaram (...) me tratavam como uma espécie de aleijadinha psicológica. (...) As saias justas pelas quais passei com drogas, prisão, críticas e boatos foram entendidas como 'a dor que ela carrega na alma por causa daquilo, tadinha'”.MUTANTES: REVIVAL PARA PAGAR GERIATRAS
“Alguns podem achar que deprecio a fatia que cabe aos Mutantes dentro da cena musical daquela época. Ao contrário, sei da importância das modernidades eletrônicas que levaram ao movimento tropicalista contribuindo com a proposta, entre outras audácias, de proibir o proibido dentro da MPB. Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira. (...) Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela. (...) Depois de vários torpedos para voltar aos Mutas e eu debochadamente declinar de todos, rolou o tal ‘retorno’ da banda festejado pela imprensa como o mais fantástico acontecimento do mundo musical interplanetário. Loki numa entrevista se vinga: 'Zélia é muito mais roqueira do que a Rita jamais foi'. Desejei boa sorte à cantora a quem dei força para integrar a banda e ao mesmo tempo me livrava do mico. (...) O que eu acho de revivals? Um bando de velhas raposas reunidas no que considero 'como descolar uma graninha para pagar nossos geriatras'. (...) Talvez não tenha sido mesmo o 'cérebro por trás' de nenhuma banda de rock da qual fiz parte. Modestamente, eu era a alma, quando uma banda morria, meu santo encarnava em outra”.
• Leia também: Rita foi muito mais do que Rainha do Rock
O BATISMO D'OS MUTANTES
“Lee não é sobrenome de família; meu pai foi o primeiro a acrescentá-lo ao nome das três filhas em homenagem ao general confederado Robert E. Lee. (...) Papo vai, papo vem, e Ronnie (Von) levanta a sugestão de um nome mais contundente para o trio. Os Bruxos era, digamos assim, pobrinho demais. Ele nos mostrou um livro que estava lendo, 'O império dos mutantes', explicando que eram seres de outro planeta que se transformavam em infinitas formas de vida a título de conquistar a Terra. Plin! Bênção, painho. (...) o début dos Mutas foi anunciado por Ronnie: 'Eles vieram de outro planeta e estão entre nós para tocar 'A marcha turca' de Mozart. Com vocês, Os Mutantes”.A MUTANTE VIROU MEDITANTE
“Sei que ainda há quem me veja malucona, doidona, porra-louca, maconheira, droguística, alcoólatra e lisérgica, entre outras virtudes. Confesso que vivi essas e outras tantas, mas não faço a ex-vedete-neo-religiosa, apenas encontrei um barato ainda maior: a mutante virou meditante. Se um belo dia você me encontrar pelo caminho, não me venha cobrar que eu seja o que você imagina que eu deveria continuar sendo. Se o passado me crucifica, o futuro já me dará beijinhos. Enquanto isso, sigo sendo uma septuagenária bem-vivida, bem-experimentada, bem-amada, careta, feliz e... bonitinha. 'Lucky, lucky me free again'*. Tempo para curtir minha casa no mato, para pintar, cuidar da horta, paparicar meus filhos, acompanhar minha neta crescer, lamber meus bichinhos, brincar de dona de casa, escrever historinhas, deixar os cabelos brancos, assistir novela, reler livros de crimes que já esqueci quem eram os culpados, ler biografias de celebridades com mais de setenta anos, descolar adoção para bichos abandonados, acompanhar a política planetária, faxinar gavetas, aprender a cozinhar, namorar Roberto e, se ainda me sobrar um tempinho, compor umas musiquinhas".*Trecho da canção “Free again”, de Barbra Streisand. Em tradução livre, “Sorte, sorte minha, estou livre novamente”.
*Para comentar, faça seu login ou assine