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Estado de Minas LITERATURA

Correspondência de Clarice revela humor de autora com imagem sisuda

Livro com 284 cartas que a escritora endereçou para as irmãs e para colegas escritores revelam suas inquietações literárias e também aspectos de sua rotina na Europa e de sua personalidade


30/09/2020 04:00 - atualizado 30/09/2020 09:23

Clarice Lispector em registro dos anos 1960, presente no livro de correspondências editado pela Rocco para marcar o centenário de seu nascimento(foto: Fotos: Rocco/Reprodução)
Clarice Lispector em registro dos anos 1960, presente no livro de correspondências editado pela Rocco para marcar o centenário de seu nascimento (foto: Fotos: Rocco/Reprodução)

Clarice Lispector (1920-1977) escreveu uma única peça teatral, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. O texto dramatúrgico foi publicado originalmente em 1964, em A legião estrangeira. Mas poderia ter saído quase 20 anos antes, não fosse a insatisfação da autora com os escritos. Em 1947, quando vivia em Berna, na Suíça, ao lado do marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, escreveu a João Cabral de Melo Neto, então vice-cônsul do Brasil em Barcelona.

O poeta pernambucano havia adquirido naquela cidade uma prensa manual para produzir edições artesanais de seus livros e dos amigos. Havia oferecido a Clarice seus préstimos na tipografia, o que a fez remexer em suas gavetas à procura de algum texto que valesse a pena.

Remexeu até encontrar o esboço de sua peça de teatro, com um único ato, escrita muitos anos antes. “Não presta mesmo, para minha desilusão já habitual”, escreveu a João Cabral. Clarice terminou a peça um ano mais tarde, mas nunca a enviou ao amigo.

Tal história é descortinada em Todas as cartas, volume de fôlego (são mais de 800 páginas) editado pela Rocco para coroar o ano do centenário de nascimento da escritora. O livro reúne um conjunto de 284 cartas escritas por Clarice entre os anos 1940 e 1970 – a divisão se dá por décadas. 

Parte desse material está em livros anteriores dedicados às missivas da escritora – Correspondência (2002) e Minhas queridas (2007), ambos da Rocco, e Cartas perto do coração (2001), organizado por Fernando Sabino para a Record.

DESTINATÁRIOS 

Meia centena das cartas do novo livro é inédita, justamente o conjunto de correspondências endereçadas aos amigos escritores. Entre os destinatários, além de João Cabral, estão Rubem Braga, Lêdo Ivo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Natércia Freire e Mário de Andrade.

Biógrafa de Clarice, autora do prefácio e das 510 notas que acompanham as cartas, Teresa Montero destaca alguns pontos do conjunto com os colegas escritores. “O diálogo com aqueles que partilham as mesmas buscas, as trocas sobre o processo de criação, as dificuldades em ser escritor no Brasil. A entrega ao ofício independe de remuneração (até porque, em vida, foi escassa), é um modo de estar no mundo.”

A pesquisa para o livro foi realizada pela jornalista Larissa Vaz, sob orientação de biógrafos e da família. Nas cartas enviadas para as irmãs, Elisa Lispector, também escritora, e Tania Kaufmann, que atuou como uma espécie de agente de Clarice quando ela vivia no exterior, há 20 inéditas no lote de 150. 

“Fatos da vida privada se cruzam com a vida literária e trazem outra perspectiva sobre a obra. Acho que o Todas as cartas também é uma espécie de autobiografia. Entendo que há hiatos no tempo nesse discurso porque a correspondência, como qualquer documento, é sempre pela metade. De todo modo se vê a escritora sob um ângulo privilegiado, na sua intimidade e muitas vezes abordando questões que não abordaria na ficção e em entrevistas”, afirma Teresa.

HUMOR 

Editor da obra de Clarice na Rocco e autor do posfácio de Todas as cartas, Pedro Karp Vasquez comenta que o volume tem duas leituras: a dos fãs e a dos especialistas. “É uma coisa interessante como ela se tornou um mito, uma personagem adorada, presente em camisetas, bolsas. Estes poderão ver a verdadeira personalidade de Clarice, inclusive seu senso de humor. Muita gente a acha sisuda, pois era de comportamento reservado. Mas na intimidade era engraçada”, diz ele.

Para os especialistas, a leitura pode desnudar aspectos ainda pouco conhecidos. “Nas cartas, as pessoas vão lembrar que ela conheceu Rubem Braga na qualidade de correspondente de guerra na Itália. E o primeiro posto do marido dela é em Nápoles, para onde vão em 1944. Tem uma coisa bonita que pouca gente sabe: Clarice participou, como voluntária, de um programa para atender prisioneiros de guerra. Ela lia para eles, levava lanches. Comenta com as irmãs que estava fazendo um trabalho em hospital.”

A edição de Todas as cartas é em capa dura com tiragem inicial de 5 mil exemplares. O processo de feitura do volume levou dois anos. Pedro Vasquez afirma que esta edição poderá dar origem a outra, acrescida com novas cartas. “Estamos assumindo desde agora que, à medida que for surgindo material inédito, como ocorreu com o relativo a João Cabral, ele será incorporado a novas edições.”

O volume vem se juntar a uma série de outros dedicados à obra de Clarice que a Rocco preparou no ano de seu centenário – em 10 de dezembro. Ao longo de 2020, a editora vem publicando, com novas edições, todos os 18 livros dela. Em dezembro sai a novela A hora da estrela (1977), com posfácio de Paulo Gurgel Valente (filho de Clarice e gestor de sua obra), seu último livro publicado em vida.

“É a primeira vez que ele escreve sobre a obra da mãe. E a abordagem que deu não foi de evocação. Escreveu sobre o conteúdo do livro, mostrando o drama social que está atrás da história de Macabéa. Um drama que Clarice viveu não na mesma intensidade, já que não é uma retirante. Mas é migrante duplamente, pois veio da Ucrânia (ela nasceu em Chechelnyk, em uma família de judeus russos), chegou ao Brasil por Alagoas (aos 2 anos), foi para Pernambuco e só depois para o Rio de Janeiro”, comenta o editor.

A pandemia interrompeu dois lançamentos em torno da obra de Clarice que ocorreriam neste ano – os livros ficaram para 2021. Teresa Montero lançou em 1999 a biografia Eu sou uma pergunta, há muito esgotada. A ideia inicial era lançar uma nova edição, com material inédito, no meio do ano, quando da Festa Literária de Paraty (Flip), também, obviamente, impactada pela COVID-19. “A pandemia foi um balde de água geladíssima no meu ritmo. Estou retomando agora com mais fôlego e espero trazer novas perspectivas”, diz Teresa.

Outro lançamento que virá no próximo ano é um livro sobre o processo de feitura do filme A paixão segundo G.H., que o cineasta Luiz Fernando Carvalho rodou com a atriz Maria Fernanda Cândido. “Vi algumas cenas, e a direção é ousada, com muitos planos fechados, com câmera feita pelo próprio Luiz Fernando. Corroteirista do filme, Melina Dalboni preparou um livro que não é um making of, mas mostra workshops que a equipe fez com especialistas em Clarice, como Nádia Battella Gotlib e José Miguel Wisnik”, conta Vasquez. Como o filme não foi lançado, a editora decidiu esperar para fazer o lançamento do livro.

TRECHO

(Carta a João Cabral de Melo Neto)

“Caro João Cabral,
você veio me trazer graves problemas: sua tipografia mágica vai ou não vai imprimir coisas minhas? acho que não. Logo que recebemos sua carta, comecei por despejar todas as gavetas da casa no chão. Nunca perco as esperanças de ter escrito, pela mão de Deus, uma coisa maravilhosa. Mas que joia, que nada. Esboços e esboços, maus esboços. A tentação de ter ao menos uma página impressa assim particularmente por você, é grande. Descobri mesmo uma peça de teatro em 1 ato! minha alegria foi grande. Imediatamente comecei a ler, cheia de curiosidade e grande benevolência. Mas, sabe, acontece que a peça não presta mesmo. Ela tem, é verdade, um coro de anjos que me enche de orgulho. Mas bastará coro de anjo? essa é a questão. Os anjos se transformaram no fim em menino e menina. Há também um sacerdote. E uma mulher que vai ser queimada viva. E é claro, o amante vem à tona, com marido e tudo. Enfim, é uma pena: não presta mesmo, para minha desilusão já habitual. E agora o problema é este: devo escrever ‘especialmente’ alguma coisa para a sua tipografia?” (Berna, 28 de novembro de 1947) 

De: Correios
Para: Clarice

Os Correios lançaram neste mês um selo (foto) em homenagem ao centenário de nascimento de Clarice Lispector, com arte assinada por Mariana Valente, neta da escritora. Ela compôs o rosto de Clarice com retalhos de cartas, livros e envelopes do acervo da avó. Com tiragem de 900 mil unidades (R$ 2,05 cada um), o selo está disponível na loja virtual dos Correios e, segundo a empresa, também em suas agências em todo o país.

TODAS AS CARTAS – CLARICE LISPECTOR
Rocco, 
864 páginas, 
R$ 119,90 (livro) e R$ 59,90 (e-book)


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