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Estado de Minas

Em novo álbum, Fiona Apple reflete estranho 2020

'Fetch the bolt cutters' tem participação de seus cachorros como 'backing barks' e fala sobre o ato de se confinar


postado em 27/04/2020 04:00 / atualizado em 27/04/2020 15:15

Aos 42 anos e após período de luto, Fiona Apple se recompôs e, ao mesmo tempo, se mostra sensível, sincera, agressiva e poética (foto: Acervo pessoal)
Aos 42 anos e após período de luto, Fiona Apple se recompôs e, ao mesmo tempo, se mostra sensível, sincera, agressiva e poética (foto: Acervo pessoal)
Ao anunciar que Fetch the bolt cutters estava pronto, ainda no início de março, quando a pandemia do novo coronavírus ainda não tinha confinado grande parte do mundo, Fiona Apple certamente não tinha consciência do quanto suas novas músicas refletem este estranho 2020.

Responsável por quebrar um jejum de quase oito anos, o trabalho foi gravado em casa, reúne músicas criadas a partir de percussões facilmente produzidas com objetos domésticos e conta com os ilustres latidos dos amados cães da cantora – Mercy, Maddie, Leo e Alfie –, que estão creditados na ficha técnica do disco como "backing barks", ou "latidos de apoio", em alusão aos backing vocals.

O título, que pode ser traduzido como "peguem os alicates", Fiona retirou de uma cena da série The fall (BBC Two), na qual a protagonista, vivida pela atriz Gillian Anderson, encontra uma sala de tortura e precisa arrombar a porta para entrar. O nome também revela um pouco do que a cantora fez desde que lançou o celebrado álbum The idler wheel..., em 2012. Na época, ela cancelou a turnê sul-americana, além de três shows no Brasil, para cuidar da cadela Janet, que sofria de câncer no peito e, posteriormente, veio a falecer.

Após extenso período de luto, Fiona Apple se recompôs e está mais afiada do que nunca. Sensível, sincera e, ao mesmo tempo, agressiva e poética, ela agora não é mais a adolescente problemática do final dos anos 1990, que estourou aos 19 anos com o disco de estreia, Tidal (1996). Aos 42, encara a vida de uma outra forma, sem namorados famosos ou a perseguição de tabloides sedentos por qualquer deslize, o que lhe tem permitido uma criação musical repleta de temáticas claramente pessoais, mas que ganham tratamento tão metafórico que passam a servir para qualquer situação da vida de qualquer pessoa.

Como no caso de I want you to love me, faixa de abertura do Fetch the bolt cutters, na qual a letra fala, em linhas gerais, sobre um amor não correspondido. Ironicamente, a primeira frase do disco talvez seja a que melhor traduza o sentimento dos fãs da cantora: "I've waited to many years", ou "eu esperei tantos anos", em tradução livre. De cara, Fiona já crava duas de suas qualidades incomparáveis: o canto e o talento como pianista.

Shameika, a música seguinte, de execução rápida e a mais pop do trabalho, apresenta o refrão chiclete Shameika said i had potential. Afinal, Shameika estava certa e Fiona prova isso na canção que dá nome ao disco, na qual exercita sua poética raivosa em versos complexos cheios de sarcasmo – com os vocais de apoio da atriz e modelo britânica Cara Delevingne.

Em Under the table, Relay, Rack of his, Newspaper e Ladies, ela continua sua jornada verborrágica ao som do blues, ora evocando os versos em falsetes inéditos, ora amargando relacionamentos que não deram certo em polifonias experimentais.

Apesar de não ser a música-título do disco, Heavy ballon, a oitava faixa, resume muito do trabalho, da própria vida da intérprete e do momento que estamos vivendo. Nela, Fiona Apple metaforiza a depressão sob a forma de um "balão pesado". "Pessoas como nós ficam tão pesadas e perdidas que o fundo do poço é o único lugar que conseguimos encontrar/Somos arrastados para lá tantas vezes seguidas, que ele começa a parecer o único lugar seguro", canta ela.

Como boa millenial, em Cosmonauts ela aborda a descrença em relacionamentos monogâmicos. Na faixa For her, Fiona cria o hino perfeito que o movimento MeToo não teve. Vale lembrar que a cantora nunca temeu ser estigmatizada por falar abertamente de seus problemas pessoais, até mesmo os traumas sexuais e o vício em drogas.

RARA NOTA 10 

A personalidade forte, além de torná-la uma espécie de diva da música alternativa, já lhe rendeu alguns prejuízos, como na vez em que brigou com os integrantes de sua banda, o que ela conta em Drumset. Para finalizar a jornada de pouco mais de 50 minutos de Fetch the bolt cutters, a cantora entrega, em On i go, uma espécie de mantra que ela assume evocar quando precisa se acalmar.

Simples, construído basicamente com piano, baixo e bateria (com exceção de algumas inserções sutis de guitarras, teclados e percussões), o disco de Fiona Apple ganhou a crítica internacional logo de cara. A bíblia indie Pitchfork atribuiu uma rara nota 10 ao disco, o que, para se ter noção, ocorreu pela última vez em 2010, quando Kanye West lançou My dark and twisted fantasy.

Muito além de qualquer qualidade técnica e poética que, de fato, possui, Fetch the bolt cutters talvez venha a ser considerado o disco do ano por ser um álbum sobre se confinar, seja dentro de casa, dentro de um relacionamento que não dá certo, dentro de problemas de saúde mental ou dentro da própria cabeça.

Como solução, Fiona decide traduzir esses estados de espírito em música, de uma maneira que a comparação com Bob Dylan ou Joni Mitchell é inevitável, ainda que com esse trabalho ela tenha esclarecido, de uma vez por todas, que Fiona Apple é a Fiona Apple dos nossos tempos.

FETCH THE BOLT CUTTERS

Fiona Apple
Epic Records
Disponível nas plataformas digitais


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