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Estado de Minas Coluna

A variação de sentido em torno do conceito de soberania

Está a pleno vapor no mundo o desmoronamento do conceito interno de soberania popular


27/09/2020 04:00 - atualizado 27/09/2020 07:55

Trump está testando o exercício da soberania dentro do próprio território para ver se é leão ou gato diante do mundo(foto: Brendan Smialowski/AFP)
Trump está testando o exercício da soberania dentro do próprio território para ver se é leão ou gato diante do mundo (foto: Brendan Smialowski/AFP)


Em frente a TVs e redes sociais do interior do estado de Nevada, Trump reclamou que sua equipe não o deixara pousar com o Air Force One no aeroporto do condado em que realizava o comício. Fingiu que não sabia que a pista não tinha capacidade para receber o 747 presidencial. Fez charme ao resmungar que gostava de ter o Air Force One atrás de si nos comícios.

É o estilo dele, que vem do setor de lançamentos imobiliários. Considera-se uma cobertura.  Afinal, em Nevada fica a torre dourada com seu sobrenome no topo. Agora presidente, seu símbolo preferido é o que projeta a soberania da Presidência, confundida com sua personalidade. Não podendo ter o avião pelas costas, mandou estacionar atrás de si a limusine presidencial. Um Cadillac conhecido como The Beast . “Vejam a Besta. O que vocês não sabem é que a Besta custa quase tanto quanto o avião,” exclamou Trump, tentando se equilibrar entre frustração e encantamento com sua régua mo- netária. E viu seu povo achar sentido em um avião custar o mesmo que um automóvel.

“Daqui pra frente será apenas América em primeiro lugar. America First,” repetiu Trump seu discurso de posse. A ideia de America First veio do primeiro líder americano que gostava de fazer comícios em frente a um avião. No caso, Charles Lindbergh, era um aviador e primeiro a atravessar sozinho o Atlântico. Nunca chegou perto da possibilidade de concorrer à presidência, salvo no romance Complô contra a América, de Philip Roth.

O fetiche de um líder que pousa dos céus com a mensagem é antigo. Mas, semana passada, na primeira vez em que líderes do mundo não puderam pegar um avião e ir a Nova York para discursar na ONU, o que impressiona é a dissonância internacional sobre o sentido dado à palavra soberania no vocabulário do poder.

Já é padrão admitir que, dentro dos países, as pessoas têm ideias muito variadas sobre democracia. Mas entre países, o que pega é a variação de sentido em torno do conceito de soberania. A ideia clássica de soberania como o Estado ter autoridade máxima sobre tudo o que existe dentro de seu território, e não aceitar interferência de outros Estados em seus assuntos domésticos, ainda é a cartilha seguida por muitos países. Entretanto, soberania já é outra coisa.

Roland Paris, que foi assessor para assuntos internacionais e de defesa do primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, considera que a reafirmação por parte de Rússia, China e EUA de versões de soberania são extralegais e orgânicas. Nessas versões, o exercício da verdadeira soberania está acima da lei e se expressa em nome de um povo em busca de grandioso destino coletivo. Se os canadenses estão preocupados, o consórcio nipo-britânico que controla o jornal Financial Times de Londres também está. O problema da jurisdição extraterritorial, mandar na casa dos outros, que alguns países estão clamando para si, é um prato cheio para escancarar a lei do mais forte.

Esse fenômeno está se espalhando em diferentes áreas do mundo que não têm clareza sobre o que é soberania. Semana passada, entrou em vigor a Lei geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira. O Brasil, que não teve força para determinar a localização dentro do país dos dados gerados no país, colocou na LGPD que ela se aplica também extraterritorialmente. Estados soberanos não escrevem que o leão miou. Confrontados é que sabemos se é um gato rugindo.

Trump está testando o exercício da soberania dentro do próprio território para ver se é leão ou gato diante do mundo. Não esconde sua grande admiração por Putin, da Rússia, e Xi, da China. Para se equiparar aos dois, quer que os norte-americanos aprovem a institucionalização da sua dubiedade sobre soberania interna e internacional. A melhor tradição dos EUA é a ideia de que a soberania do governo, sobretudo da presidência, permaneça sob a égide da intensa desconfiança na sua atuação doméstica. Compensada por amplos poderes para a atuação externa, inclusive para errar, como no Vietnã e no Iraque. Domesticamente, os EUA se orgulham de ser a terra das pessoas livres e onde o governo atua sob o império da lei.

Por outro lado, internacionalmente, o governo americano tem poucas amarras no exercício de sua soberania, protegida por atos secretos. A releitura de Trump sobre a legitimidade da soberania presidencial em solo americano ainda é balão de ensaio. Na Rússia e na China, já são a regra. Mas faz muito tempo que essa possibilidade paira sobre os EUA.

Está a pleno vapor no mundo o desmoronamento do conceito interno de soberania popular. A rendição interna à soberania do governante é uma capitulação da democracia que cada vez mais se materializa no mundo. (Com Henrique Delgado)


PAULO DELGADO, Sociólogo
contato@paulodelgado.com.br

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