
Viva Kafka!
Carlos Rocha
Diretor
Quando o escritor tcheco de língua alemã Franz Kafka (1883-1924) relata, em seu diário, se sentir um prisioneiro dentro das quatro paredes do próprio corpo, de onde tentava se relacionar com a família e o mundo, de estranhos costumes, ele não necessariamente falava, apenas, de seu real isolamento, mas de um choque que nomino de estranhamento existencial.
Choque de uma potência, que pulsa vida e criatividade (que somos nós), contra um mundo pronto, acabado e rígido (a cultura do estabelecido).
Talvez três outros elementos, mesclados, tenham o mesmo peso em sua vida e escrita: a ambiguidade, o humor e o absurdo – que de tão sem sentido, tornam-se risíveis.
Quando, em “O processo”, o personagem central Josef K, um pacato e solitário bancário que jamais tinha se envolvido em ilícitos, recebe a visita de policiais para informá-lo, no dia de seu aniversário, de que estava sendo processado por algo que ele nem sequer saberá do que se trata até sua condenação, o autor não necessariamente está a retratar apenas as entranhas confusas, absurdas e burocráticas da Justiça, com seus membros imersos em vaidade, cobiça, avareza e todo tipo de abuso, num horizonte em que “o que realmente importa são as relações” – como diz, textualmente, o conceituado advogado Dr. Huld.
Talvez o autor queira, mais uma vez, nos falar sobre o estranhamento de como é possível haver no mundo culpados e inocentes, quando somos todos seres humanos. Ou somos todos culpados, ou todos inocentes, “já que a verdadeira Justiça é inacessível, a mim, a você e a todos!” – também nas palavras do citado advogado.
Quanto às três montagens desse texto, a primeira, com grande impacto na cena teatral de Belo Horizonte, ocorreu em 1981, na recém-inaugurada Sala Multimeios da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, na Praça da Liberdade, onde, além de sermos um dos primeiros grupos a montar espetáculo no que seria denominado, mais tarde, de Espaço Alternativo, ousávamos verter literatura ao palco e com um autor dessa envergadura – considerado “pesado”, “complicado” e até mesmo ‘incompreensível para o público”, que, não sabendo disso, comparecia à sala e saía satisfeito com o espetáculo.
A segunda, remontagem com várias novidades, se deu em 1984, a convite do Goethe Institut, para comemorar o centenário de nascimento de Kafka. Ambas com a Cia. Sonho e Drama, cujo elenco reunia Cida Falabella, Luiz Maia, Paulo Lisboa, Gil Amâncio e Bernardo Mata Machado.
Já a terceira, em 1996, com cenografia e elenco diferentes, foi montada como espetáculo de formatura dos alunos do Centro de Formação Artística do Palácio das Artes (Cefar).
Sobre a questão da atualidade da obra, confesso que até hoje passeia em mim o desejo de uma quarta montagem, pois autores das chamadas obras abertas (passíveis de variadas abordagens), como Kafka, beiram ao eterno... até que a humanidade supere suas problemáticas.
Então, viva Kafka! E que por meio de seu exemplo possamos ter outros Camus, Sartres, toda a turma do Absurdo, García Márquez, Borges, nosso querido Rubião. E muito mais!
Se o artista é “a antena da raça”, a arte estará sempre olhando à frente da humanidade.
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