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Estado de Minas COLUNA HIT

Depois de tanto sofrimento, Octavio Cardozzo tem fé no carnaval

Cantor e compositor fala dos impasses da pandemia no 'Diário da quarentena', especial da Coluna Hit que já soma 196 páginas


28/09/2020 04:00


 
Se eu fechar os olhos, posso sentir novamente o tremor do chão naquele fevereiro. Dois anos depois, tenho ainda pedaços de passado. Desde então, ninguém se toca. Todos os dias me levanto e digo em voz alta o nome de todos os conhecidos que morreram. As pessoas morrem pela segunda vez quando deixamos de nos lembrar delas. Será que alguém vai se lembrar de mim?
 
Por um segundo, me esqueci do rosto do meu irmão. Foi na quarentena que ele conversou comigo. Um dia, olhou pro lado e eu estava lá. No momento em que escrevo isso, pouco se sabe como será daqui pra frente. O comandante militar do Planalto, eleito pelo Partido Conservador Liberal (?), do agora Estados Brasileiros Soberanos, foi deposto com suas asnidades. É difícil conseguir esconder algo no Brasil depois de Nelson Rodrigues, mas eles conseguiram!
 

"Estamos em guerra. A gente fica na dúvida se quer ou não receber notícia%u201D

 
 
Meu tio falava que política é a capacidade de evitar guerras. Estamos em guerra. A gente fica na dúvida se quer ou não receber notícia. Um país sem favelas, porque deixaram todo mundo morrer. Tem coisa mais banal no Brasil do que a morte? Gente virou número. Na TV, no reality show, uma apresentadora neocanalha, aos berros, conversa ao vivo com um sequestrador. Eles adoram ouvir o som da própria voz. No episódio de hoje, um assassino vegano.
 

"Cegueira e paralisia coletiva. Me dê motivos para acreditar no Brasil. O Brasil existe?"

 
 
Mas recebi um like do meu melhor amigo, é... Qual é mesmo o nome dele? A gente não tava preparado pras redes sociais, né? Elas dão a certeza de que você influencia alguma coisa. Cegueira e paralisia coletiva. Me dê motivos para acreditar no Brasil. O Brasil existe? Assisto a um pornô pós-moderno com assassinatos e merchandising, ou a uma comédia romântica pra fingir que acredito em alguma coisa. Acostumar-se é perigoso.
 

"Enquanto vive o artista, o Brasil vai se salvar!"

 
 
Desde ontem, podemos sair às ruas. Estamos todos vacinados. Do vírus e do governo. Tomei meu último quartinho de Rivotril. Existe alguma pessoa honesta que não sofre de ansiedade? Entro no carro pra dar uma volta. Previsão do tempo: quente por demais.
 
Desde a invenção do iPhone, eu não via o céu. Está azul! No rádio, uma canção em inglês. As ruas, quase sem árvores, ainda vazias e silenciosas. Duas quadras depois, vejo de um lado da rua o muro inteiro derrubado no chão e alguém fantasiado de Zé Gotinha escrevendo em tinta vermelha: “O matriarcado de Pindorama está chegando”. O outro lado não consigo ver, mas ouço vozes frágeis cantando Oração de São Francisco de Assis. É morrendo que se vive para a vida eterna.
 
Um drone surge entregando comida a uma moça, o homem de bem deixa a avó pra morrer na calçada, museus interditados, o Teatro Griselda Gambaro agora é uma igreja. Parei o carro e chorei. Desliguei o rádio, que agora tocava outra música em inglês, e ouvi de longe um trompete, tocado por uma senhora na janela de um sobrado. O hino da Corte Devassa, quase fúnebre. Só pode ser atriz, pensei. Pessoas começavam a chegar de todos os lados, aglomerando-se pela primeira vez embaixo da janela, relembrando aquela antiga, familiar e anárquica felicidade.
 
Pele úmida com cheiro de sabonete Lux, gosto de cerveja quente em fim de festa. Ainda existia o carnaval. Tinha um casal, e não sei precisar quem avançou em quem primeiro. Só sei que se amaram ali na rua mesmo. Chorei de novo.
 
Um povo que é capaz de refazer o carnaval, mesmo depois de tanto sofrimento, não merece tanto abuso. Ainda tinha um humano dentro de mim. Enquanto vive o artista, o Brasil vai se salvar!

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