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Estado de Minas PANDEMIA

Fazer fiado? Vender o liquidificador? Como sair dessa?

No 'Diário da quarentena', a dramaturga Eloisa Elena narra a história da mãe de família que, de seu quintal, mantém a esperança, apesar das tragédias da vida


29/07/2020 04:00

Eloisa Elena
atriz, produtora e dramaturga


Acabou o gás. Justo agora, podia ter terminado de fazer o café. Logo cedo. O que faço? Já tinha colocado o açúcar, seis colheres cheias, não posso desperdiçar.

Chego na porta, o quintal tá vazio. Ninguém apareceu ainda do lado de fora.

Penso. Preciso pensar rápido. A água vai esfriar. Não posso desperdiçar o açúcar.

Pego o vidro de álcool que ganhei na cesta básica da igreja. Derrubo um pouco na latinha vazia de extrato de tomate, risco o fósforo, ponho em cima o caneco da água, jogo rápido as duas colheres de pó e faço um café morno. Lembro da minha vó quentando água 
na latinha.

Sento na mesa da cozinha. A casa tá em silêncio. Os meninos dormem. Tomo o café, que já tá quase frio. É melhor quando 
dormem muito. Enquanto tão dormindo 
não querem comer.

Se fosse outro tempo, podia ver se alguma vizinha tinha gás pra me emprestar. A Cida e a Jennyfer têm dois botijões. Mas, neste momento, nem tenho cara pra pedir – tão desempregadas, as duas.

Aqui no quintal, quem tá trabalhando é o Romildo, porque a fábrica não fechou, e a Marivete, que não tá trabalhando, mas a patroa continua pagando. O resto...

Lembro que hoje é dia 17 e ainda faltam 13 dias pro mês acabar. Só recebo o dinheiro da ajuda no outro mês. Sei lá eu que dia. Seiscentos reais.

Sem gás. Abro o armário e vejo o que ainda tem da cesta básica. Não é muita coisa. Não adianta tentar trocar por botijão, senão vou ter o gás e não tenho o que cozinhar.

Penso no liquidificador, que quase não uso mesmo. A bicicleta velha das crianças tá encostada na parede.

Não, a bicicleta não. Vou dar outro jeito. Ver se faço alguma coisa e tento vender na estação. O que posso vender? Não sou boa de artesanato, essas coisas não sei fazer. E, também, até fazer e vender.... Sou boa de cozinha, bolo ia vender que nem água, mas não tenho gás.

Ir na venda e ver se faz fiado? Antes era fácil o fiado, mas agora ninguém quer se arriscar.

Abro a porta da cozinha e olho o quintal. Preciso respirar. Ainda tá vazio. Uma bênção. Daqui a pouco, os meninos acordam e começa a barulheira, o Zé Carlos senta na porta com a cerveja gritando no jogo de bola dos meninos, Rosete e Nalva começam a brigar. A alguém põe um forró ou um funk pra alegrar. Pronto, tudo parece que voltou ao normal. Daqui a pouco, pode ser um dia qualquer aqui no quintal. Sábado de aniversário, Natal, a vida seguindo.

Só por um tempinho, esqueço tudo e penso que é assim mesmo. É férias da escola, é dia de festa, é domingo sem trabalho, vai ter churrasco, refrigerante, briga.

Fecho a porta pra aproveitar o resto de silêncio.

A garrafa de café tá cheia. Tem um pouco de leite em pó.

Tem pão, tem bolacha. Hoje todo mundo vai comer.

Tomo o último gole do café gelado. Hoje todo mundo vai comer.




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