(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

A força de uma constelação

"O Cruzeiro traz consigo um simbolismo que o projeta para um universo em expansão"


03/10/2023 04:00
737

Lilo com o neto Davi
Lilo e seu neto Davi completam, com Luciano Alvarenga, as três gerações cruzeirenses da família (foto: Álbum de família/divulgação)


Por Luciano José Alvarenga (*)

1966. Rádio ligado. Era o modo de se conectar ao mundo para além das serras de Campo Belo. Lilo aguardava o evento esportivo da noite: um time de jovens até então desconhecidos, formado por gente simples, que aprendera a jogar bola na rua, enfrentaria o multipoderoso, lendário e aclamadíssimo Santos Futebol Clube. No pensar pé-no-chão e discreto das Gerais, seria já algo muito significativo enfrentar Pelé, Coutinho e cia. Nas rodas de conversas e palpites, era quase consenso que a equipe paulista venceria as duas partidas da decisão. Lilo, entretanto, preferiu aguardar. Sabia que o esporte – o futebol, especialmente – às vezes se abre à dimensão do imprevisível. Quem sabe?

Mas não, não foi o que ocorreu. Não foi sorte, nem o imponderável. Foram a consistência e a exuberância técnicas arrebatadoras de craques devotados à arte do futebol. 30 de novembro, placar no Mineirão: um impressionante 6 a 2. 7 de dezembro, Pacaembu: 3 a 2, de virada. Assim, aos 45 anos, maduro por já confrontar oligarquias políticas e da imprensa em Minas e no Brasil, o Cruzeiro Esporte Clube se fazia conhecer mundialmente.

O destino da Taça Brasil 1966 estava traçado nas linhas da constelação símbolo da América do Sul, prefigurando outra célebre conquista 10 anos depois: a Copa Libertadores. Algo que, neste país, só o lendário, eu dizia, Santos de Pelé, conseguira. Foi então que Lilo olhou para o céu e, aguerrido e apaixonado jogador artista do futebol desde sempre, decidiu: serei parte, por entre estas serras, dessa constelação.

Os anos se passaram, o mundo mudou. Ele muda de modo cada vez mais veloz, insano e ensurdecedor. Na história do Cruzeiro, houve muitas alegrias. Mesmo sem o brilho das equipes irrepetíveis – de Tostão, Dirceu Lopes e cia. –, o Clube colecionou títulos, alguns improváveis. Assim, a constelação de torcedores expandiu-se Minas afora. O Cruzeiro traz consigo um simbolismo que o projeta para um universo em expansão. Maior patrimônio do Clube, são milhões de torcedores estrelados: Lilo, Rosa, Luciano, Michelle, Yasmin, Davi, Lucca, Mariana…

Foram tantas alegrias, eu dizia. Mas foram muitas, também, as decepções. Crises financeiras, times ridículos, títulos perdidos ou tomados à força, a queda para a série B, os percalços para sair dela. Hoje, no campeonato mais difícil de sua história, a sua reconstrução, o Cruzeiro insere-se numa realidade tão diferente daquela de 57 anos atrás… O futebol não é o mesmo, escreveu Eduardo Galeano, desde que os uniformes dos clubes passaram a estampar propagandas. A lógica do dinheiro, do vale-tudo pelo lucro, colonizou os esportes. Os superlativos cifrões que animam o “mercado da bola” dão o tom de um microcosmo surreal, alienado dos dramas e das dores do mundo. Jogadores viraram ídolos virtuais, times são montados e desfeitos à fugacidade das relações líquidas de Bauman. O dinheiro e os poderes que ele confere alcançam tudo. Validam narrativas que beiram à ficção, fabricam campeões – até mesmo do passado.

Como se reconstruir, conservando uma identidade forjada na síntese entre arte, discrição, luta e força simbólica, é um desafio ao Cruzeiro. Neste caminhar, mais que um lamento, creio, parafraseando Raffaele La Capria, na força potente da nostalgia. Recordar vivamente a sua história de resistência e conquistas significa lembrar a todos como ainda deve, pode e será o Cruzeiro que queremos. Afinal, as luzes dessa constelação –  as que avistamos no céu e as que passeiam na Terra – também vêm do passado, mas se fazem presentes e se farão futuro.

(*) Luciano José Alvarenga, professor e pesquisador, é servidor do Ministério Público de Minas Gerais. Escreveu a crônica a convite do colunista Gustavo Nolasco e a dedica a Maurílio José de Alvarenga, o Lilo, aniversariante de 2 de outubro e estrela primeira de três gerações de cruzeirenses.

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)