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Estado de Minas DIREITO E INOVAÇÃO

Dívidas trabalhistas e tributárias: um risco para a SAF

Passivo fiscal e Justiça do Trabalho exigem garantias para a transformação dos clubes em empresas


24/03/2022 06:00 - atualizado 24/03/2022 07:39

Os outros 10% das ações permanecerão com o clube (associação)
Os outros 10% das ações permanecerão com o clube (associação) (foto: Pixabay/Divulgação)
O dia 04 de abril de 2022 pode ser histórico para o Cruzeiro Esporte Clube. Está prevista para esta data uma reunião de seu conselho deliberativo convocada para avaliar o contrato de compra de 90% das ações da Sociedade Anônima de Futebol(S.A.F.) criada no final do ano passado. Os outros 10% das ações permanecerão com o clube (associação).

Na reunião também, serão analisadas as novas exigências do comprador, Ronaldo Fenômeno - que já vem administrando a empresa, desde o início do ano.

Em um pronunciamento na semana passada, o ídolo e, agora investidor, afirmou que o clube (associação) teria uma dívida tributária em torno de R$ 200 milhões e que seus centros de treinamento (Tocas da Raposa I e II) teriam sido dados em garantia para o pagamento do débito. Ele propôs, então, a transferência destes imóveis para (S.A.F.) da qual terá o controle e se comprometeu a assumir a dívida evitando que o time de futebol ficasse sem lugar para treinar.

O Conselho Deliberativo do clube reagiu imediatamente se opondo à operação e colocando em xeque a concretização da operação de compra.

A partir de então trechos do contrato preliminar que até então, estava sob sigilo, vêm sendo divulgados e suas cláusulas têm revelado condições tidas como desfavoráveis ao clube - o que gerou críticas aos responsáveis pela negociação.

Simultaneamente a tudo isto, ex-empregados do Cruzeiro vêm incluindo a S.A.F. em suas ações trabalhistas para que seja reconhecida uma responsabilidade solidária da empresa em arcar com as dívidas do clube (associação).

Sem entrarmos no mérito sobre as demais condições do negócio (valor dos aportes, forma de pagamento etc), a intenção de se buscar garantias para que a nova empresa não seja responsabilizada por dívidas anteriores parece legítima.

Lembremos que para a criação da S.A.F Cruzeiro, houve uma cisão do departamento de futebol do clube (associação), conforme permite a lei que instituiu este novo modelo de empresa. 

Normalmente, a consequência natural de uma operação como esta é a transferência de patrimônio e de direitos e obrigações da empresa anterior para a nova empresa criada. Esta transferência é denominada de sucessão e suas regras estão previstas no contrato feito pelos envolvidos e na lei.

Os pontos mais sensíveis desta sucessão sempre têm a ver com a sucessão de obrigações trabalhistas e tributárias. Isso porque, diferentemente do que ocorre com dívidas de natureza cível, as cláusulas previstas em contrato sobre a responsabilidade por débitos com trabalhadores e com o fisco não se sobrepõem às normas legais.

Os idealizadores da lei 13193/21 que trata da Sociedade Anônima do Futebol (S.A.F.) tentaram resolver isto, mas seu texto final deixou margem para interpretações diversas.

Ele prevê que a empresa criada no caso de uma cisão (que é o caso do Cruzeiro) responderá apenas por obrigações cíveis e trabalhistas do clube (associação) relativas às atividades específicas ao objeto social da S.A.F. Como a S.A.F. Cruzeiro tem o futebol como seu objeto social, dívidas da associação relativas ao departamento de futebol lhe serão transferidas.

A lei, contudo, não prevê uma responsabilidade integral. A obrigação da S.A.F limita-se ao repasse de 20% de sua receita para o clube pagar estas dívidas, por meio de um processo coletivo, que poderá ser um regime centralizado de execução ou um processo de recuperação judicial. E o clube – associação deverá utilizar 50% dos dividendos que receber como sócio da S.A.F. para a quitação destas dívidas em até 10 anos. Se ela não ocorrer após este prazo, a S.A.F. então poderá responder pelo pagamento de um valor além dos 20% de sua receita.

Em uma interpretação literal da lei, a S.A.F., portanto, só responderá pelas dívidas da associação se todos estes “requisitos” forem preenchidos. 

Caso o clube (associação), por exemplo, não instaure um dos processos coletivos de pagamento, seus credores nada poderão cobrar da S.A.F. 

Há sérias dúvidas se o judiciário trabalhista seguirá essa interpretação, pois o modelo de sucessão previsto vai de encontro às normas da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) sobre sucessão trabalhista. De acordo com elas, as dívidas trabalhistas da empresa sucedida são sempre de responsabilidade da empresa sucessora.

Uma amostra do que pode vir a ser o entendimento da Justiça do Trabalho sobre o tema pode ser vista em um caso envolvendo o próprio Cruzeiro.

Em uma decisão recente, a Juíza da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte condenou, de forma solidária, o clube – associação e a S.A.F., ao pagamento de verbas trabalhistas a um ex-preparador de goleiras do time feminino do Cruzeiro (a sentença foi proferida no processo de número 0010052-44.2022.5.03.0012 e seu acesso é público no site do Tribunal Regional no Trabalho de Minas Gerais)

Para ela, a lei 13.193/21 (que trata da S.A.F.) trouxe uma espécie de sucessão parcial da empresa (referindo-se à obrigação dos repasses de 20% da receita). Enfatizou, porém, que, de acordo com a legislação trabalhista, o Cruzeiro associação e a S.A.F integram um grupo econômico e que por isso devem responder de forma solidária pelas verbas trabalhistas devidas ao ex-funcionário. 

Assim, segundo seu entendimento, o simples descumprimento da obrigação de repassar os valores já é suficiente para que se cobre a dívida diretamente da S.A.F.; ou seja, não seria necessário o preenchimento de todos aqueles requisitos da lei.

É claro que trata-se de uma das primeiras (senão a primeira) decisão da justiça do trabalho envolvendo a questão que somente será melhor analisada após o pronunciamento dos tribunais superiores. De todo modo, põe em risco a adoção de um modelo visto como fator preponderante para a constituição de uma S.A.F. 

Sobre a sucessão tributária, a questão parece ser ainda mais delicada. Isso porque a Lei (da S.A.F) simplesmente não tratou dela. A obrigação de repasse do percentual da receita, como visto, só se refere às dívidas cíveis e trabalhistas.

Neste caso, para a análise desta responsabilidade, serão aplicadas as normas gerais de nossas leis tributárias e a jurisprudência já definida sobre o assunto.

Uma das regras principais está no Código Tributário Nacional (artigo 132). Segundo ela, havendo fusão, transformação e incorporação de empresas, as empresas sucessoras é que serão responsáveis pelo passivo tributário das empresas sucedidas.

Embora ele não fale de cisão – que foi a operação realizada pelo Cruzeiro, a receita federal e os tribunais superiores entendem que a regra é a mesma. A possibilidade, portanto, de a S.A.F. ser responsabilizada pelas dívidas fiscais do clube é real. 

Ao que tudo indica, portanto, as novas exigências feitas pelo Fenômeno não visam, somente, garantir o local de treino da equipe, mas assumir a gestão deste passivo. Caberá, então, ao Conselho analisá-las em conjunto com as demais cláusulas contrato que tanta polêmica vêm causando 

O autor desta coluna é Advogado, Especialista e Mestre em Direito Empresarial

Sugestões e dúvidas podem ser enviadas para o email felipe@ribeirorodrigues.adv.br

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