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Estado de Minas CORAÇÃO DE MÃE

Ela nunca gostou da Barbie

Crianças já desconstruíram esses conceitos que fizeram gerações anteriores sofrerem com papéis e cores definidos por uma cultura de senhores de engenho


11/10/2020 04:00 - atualizado 18/10/2020 08:24


A visita ao ateliê de uma amiga que não via há tempos foi como mágica. Como se ela voltasse a ser criança, entrou no túnel do tempo. Soninha Gargiulo faz bonecas de pano desde que se separou do companheiro. 

Com os filhos ainda pequenos e problemas sérios na coluna, Soninha não podia trabalhar e começou a fazer bonecas, mas parou por um tempo para se dedicar à música, que é o seu dom. Depois, conseguiu se deliciar com as duas tarefas. Hoje, ela não consegue mais parar de fazer bonecas, tocar e cantar.

Entrar no ateliê de Soninha é um sonho. Tem bonecas pretas e morenas, que são campeãs de venda. Tem também tipo rastafári, com cabelos espetados. Os meninos adoram. No pequeno espaço há araras do teto ao chão cheias de cabides de roupas e prateleiras com bonecos prontos, todos muito bem-vestidos.

As crianças entram em um mundo encantado e podem escolher outro vestido para trocar na hora de brincar. As roupas que Soninha cria são tão bonitas e bem-feitas que as mães compram várias, para usar em outras bonecas.

Em tempos de bonecas que falam, cantam e dançam, as de pano não perderam o lugar. Ainda despertam um sentimento indescritível na criança, por causa da simplicidade nos traços e formato.

“Vejo esse encantamento quando chego com minha caixa cheia de bonecas. Os olhos delas brilham, assim como os meus quando as crio, quando estou costurando, cortando o tecido, passando a linha e fazendo os cabelos de lã. Nesses momentos, volto a ser criança. Brinco o tempo todo.”

Se pudesse, dava para todas as crianças, mas metade do que faz doa para asilos. As senhoras mais velhas e institucionalizadas adoram. Fazer boneca é entrar no mundo da fantasia. Muitas vezes, ela sonha com uma boneca, acorda e vai direto para a máquina de costura. De repente, a boneca está pronta.

A fala de Soninha despertou em mim a lembrança de uma cena que jamais esqueci. Mãe e filha, já no entardecer da vida, passeando no quarteirão do bairro. De braços dados como se fossem bengalas, elas andavam devagar, uma respeitando a dificuldade da outra. Pareciam sintonizadas, não apenas na cadência dos passos, mas se complementavam.

Davam voltas no quarteirão, mas os moradores do bairro não olhavam diretamente para as duas. Pareciam temer a visão inevitável do envelhecer. Todos desviavam o olhar daquela cena de mãe e filha em busca da dignidade da velhice.

Também senti dor ao olhar para as duas, que caminhavam silenciosamente em direção à decrepitude da vida. Tentei desviar a visão dos cabelos ralos e brancos, das rugas pelo corpo, dos braços flácidos, das pernas trôpegas que caminhavam com dificuldade.

Dos sinais de demência senil de uma delas. A cena seria corriqueira se a senhora mais velha não tivesse nos braços uma enorme boneca, que se parecia com um bebê de verdade.

Ela segurava a boneca com firmeza. Apesar de não conseguir mais segurar nem a si mesma, ela estava decidida em sua função de embalar o bebê de borracha, alheia às verdades e mentiras da vida.

A boneca, vestida para os dias frios de julho, com um gorro e uma manta de lã, nem ligava para o calor sufocante. As duas senhoras nem sentiam o céu incrivelmente azul, bem parecido com os olhos da boneca.

Ninguém sabe o que aquela senhora sentia com a boneca nos braços, mas parecia bem na tarefa mais antiga do mundo: a de ser mãe, de cuidar de outra pessoa. Ela só aprendeu a cuidar e não a ser cuidada.

O que pode uma mulher de mais de 90 anos fazer, já com sinais visíveis de perdas cognitivas irreversíveis, a não ser embalar o tempo nos braços? O que pode realizar uma senhora de passos tão lentos e doloridos em mundo que está virado de cabeça para baixo?

Ela não tem mais liberdade para definir o próprio destino. Não tem mais independência para planejar uma velhice diferente. Sabiamente, a filha lhe devolveu a alegria de viver, colocando em seus braços o sentido de toda uma vida, um bebê, mesmo que de mentira.

A velha senhora nem notou que o bebê não mexia, não falava, não andava. Ela cuidava do bebê com tanto amor que ninguém ousaria duvidar da existência viva daquela boneca.

Em meio a uma pandemia e com o Dia das Crianças próximo, confesso que tive bonecas de todos os tipos. Gostava de mudar o penteado delas. Mas preciso falar da mudança de comportamento de meninas e de mulheres, que derrubaram o tabu do instinto materno. Nunca gostei de Barbies. As meninas hoje são o que querem ser. Ter filhos ou não é escolha de cada mulher.

Meninas podem gostar de bonecas, mas o sentido do brincar é outro. Há uma consciência do brinquedo. Há uma desconstrução de gênero nas cores das roupas. Ninguém mais escolhe cor-de-rosa para meninas e azul para os meninos, como pregou uma certa ministra desvairada.

O fato de ter tido um menino ou menina não é garantia de nada. Há consciência de deixar mais livre a escolha dos filhos. De não demarcar tanto. Não há garantia de que um menino que veste azul será heterossexual. Meninos também brincam com bonecas.

Crianças contemporâneas já desconstruíram esses conceitos que fizeram gerações anteriores sofrerem com papéis e cores definidos por uma cultura de senhores de engenho, patriarcas do medo, do ódio e do desprezo por mulheres, negros e homossexuais.

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