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Estado de Minas CORAçãO DE MãE

Um brinde à vida longa e saudável

"Com três filhos que já bateram asas, e duas netas, eles vão seguindo o roteiro da vida em comunhão"


postado em 26/05/2019 07:00

(foto: Pixabay)
(foto: Pixabay)

Ela não conseguiu apagar aquela imagem da mente e do coração, mesmo com o passar do tempo. Estava começando no jornalismo com toda garra. Achava que poderia mudar o mundo e a realidade dos que sofriam, dos humilhados, ofendidos, marginalizados e excluídos. Não foi por acaso que conheceu o médico Flávio Aluízio Xavier Cançado, um dos primeiros geriatras e gerontólogos, especialidade ainda pouco conhecida. Ela estava com vinte e poucos anos e nem sequer pensava no amanhã. O cenário demográfico do envelhecimento ainda não acenava com um tsunami.

Na primeira entrevista com o médico, no começo dos anos 1980, Flávio Cançado falou o nome de uma demência que era pouco conhecida e divulgada na época: doença de Alzheimer, que mata as células do cérebro, devasta a memória até o ponto de a pessoa não se lembrar mais de quem é.

Para ilustrar a entrevista, ele mandou para a repórter a imagem de um rosto intacto e que, aos poucos, vai se deteriorando com a doença que pode durar até 10 anos. A primeira ilustração era a de um rosto normal. Com o avanço da doença, a ilustração vai retirando a identidade da pessoa, já sem sobrancelhas e olhos. Em seguida sem nariz e boca, até desaparecer as feições por completo. A tragédia do Alzheimer é o desaparecimento de si mesmo.

Aos poucos, a pessoa passa a não reconhecer os filhos, o homem ou mulher que ama ou amou, a casa onde viveu, os objetos que contam a história de vida dela, as palavras aprendidas, a geografia do cotidiano, onde é o quarto, o banheiro. A pessoa passa a ser um invólucro de carne que não reconhece a si mesmo. Os doentes de Alzheimer em estágio avançado são vistos como aqueles que respiram, mas não existem, que insistem em morar num corpo que já foi desocupado. Como uma casa abandonada e vazia.

Aquela imagem nunca mais se apagou para a repórter iniciante. Depois desse dia, Flávio Cançado passou a ser fonte de inúmeras reportagens sobre o envelhecimento, quando ninguém nem tocava no assunto, pois velhice era assunto constrangedor. Velho era o outro. Um parente distante. Ninguém se enxergava de cabelos brancos, mas o tempo é inexorável.

Os pais dela envelheciam. A mãe sobrevivia à morte do marido e envelhecia também. Flávio Cançado acompanhava o ritual de envelhecer da mãe dela, com cuidado, gentileza e ternura até o fim. No hospital onde estava internada, ele chegava todos os dias para ver como estava. A mãe dela partiu e Flávio Cançado continuou, até que ninguém mais pôde deixar de lado o assunto longevidade. O tsunami demográfico está aí. Velhos por toda a parte: em casa, nos restaurantes, nos bancos, nas ruas, nas praças, nos hospitais, nos parques. Envelhecemos.

No mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de pessoas com mais de 65 anos ultrapassou o de crianças de 1 a 4 anos. Em 2039, o Brasil enfrentará o mesmo problema. Mais velhos do que crianças. A doença de Alzheimer acomete hoje 11,5% da população acima de 65. São 1,2 milhão de brasileiros que não sabem mais de si mesmos. Em pouco tempo, todos seremos gerontólogos, independentemente da formação profissional. Teremos de cuidar dos nossos pais, dos vizinhos, dos parentes, dos amigos. Será que estamos preparados?

Aos 79 anos, Flávio Cançado é exemplo do envelhecimento ativo pregado pela ONU. Mostra que é possível se revelar em qualquer tempo da vida. No dia 28 de maio, a partir das 19h, na Livraria Leitura do Pátio Savassi, ele lança o primeiro livro de poemas O elo invisível, 3i Editora Ltda. Casado há 45 anos com Maria Victória Flecha de Lima Xavier Cançado, o médico homenageia a esposa a partir da capa do livro, com uma foto elegante de Victória ainda jovem, passando por poemas que falam desse amor impecável. Os dois estão envelhecendo juntos. Com três filhos que já bateram asas, e duas netas, eles vão seguindo o roteiro da vida em comunhão.

O casal vive em uma casa no Bairro Mangabeiras, onde um pergolado abriga as refeições do dia a dia, os assuntos do momento e os cães Fifi, Espeto e Jeff. O último – um velho schnauzer – morreu no dia 3 deste mês, no colo do médico, deixando um vazio sem tamanho. Ele conta que naquele dia, Fifi, Espeto e Jeff foram para o petshop tomar banho. “Todos chegaram cansados, pouco antes das 16h, porém, espertos e deslumbrantes, fazendo festa para todos. Jeff chegou a ser admirado de tão bonito que estava. Todos limpos e perfumados, com pelos esvoaçantes. Comeram conosco, pedaços de biscoitos e pão. Nesse lanche, fomos informados da pancreatite aguda do Jeff, o que explicava o latido alto, prolongado e sofrido. Depois do lanche, a minha mulher sentiu um mal-estar e uma angústia intensa. Resolvi ficar em casa. Sentei na poltrona e Jeff veio para o meu colo. Algum tempo se passou, ele virou o focinho para a direita, deu um uivo lancinante, horripilante e partiu.” É esse médico que cuida com tanto apreço das pessoas mais velhas.

Com uma vista para o que restou da Serra do Curral, a casa do doutor Flávio é o novo endereço do seu consultório, onde recebe pacientes antigos e novos, em longas conversas. As consultas não duram menos do que duas horas, sem tempo marcado para quem quer acima de tudo ser ouvido e acolhido. O dono do tempo é o paciente idoso. Ele está sempre pronto para atender. Um médico diferente, que reconhece: “Paciência, responsabilidade e amor são remédios imprescindíveis para quem cuida da pessoa idosa. Tem que saber ainda lidar com as emoções. Sem isso não tem jeito, não pode ser profissional dessa área. Tem que enfrentar a velhice como ela é: limpar, cuidar, trocar fralda”.

No livro a ser lançado no dia 28, ele também dedica poemas a pacientes que estiveram sob seus cuidados até o fim da vida. Espiritualizado, ele tem certeza que medicina e fé andam de mãos dadas, que a oração também é capaz de curar.

Formado há 53 anos, foi um dos primeiros a abraçar a causa do envelhecimento. Estudioso, humano, interessado, iniciou a carreira em 1966, como anestesista do Hospital Sara Kubistchek, e como clínico, urologista e ortopedista no Hospital Militar. Trabalhando no Centro de Terapia Intensiva (CTI), no pré e pós-operatório de pacientes mais velhos, interessou-se pela geriatria, especialidade que ajudou a implantar, divulgar e preparar no Brasil, por meio de cursos e de congressos nacionais e internacionais. Criou associações, grupos de debate e de apoio aos familiares de pacientes com Alzheimer.

Ninguém melhor do que ele para falar sobre o crepúsculo da existência, ainda mais com o aumento da expectativa de vida da população que está transformando o cenário demográfico do país e do mundo. Paciência e competência não lhe faltam. Conhecer Flávio Aluízio Xavier Cançado é tomar uma injeção de ânimo e pensar que ainda existem médicos assim.

P.S:
Para dizer que também estou envelhecendo, que hoje faço parte das estatísticas e que Flávio Cançado e Victória são meus amigos. Quando visito o casal, trocamos risadas sobre os percalços da velhice - e seguimos em frente, com as dores e alegrias que a idade proporciona.

*Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente

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