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Estado de Minas

Navegante do vapor Benjamim Guimarães, artesã e cantora lança livro com memórias

Obra narra experiência de oito anos a bordo de um vapor no Velho Chico, lendas e histórias de personagens ribeirinhos. Narrativa lembra perseguição pela ditadura


26/12/2015 07:00 - atualizado 26/12/2015 07:53

Perseguida pela ditadura, Lourdes Barroso se ocultou em um vapor, onde deu voz aos tripulantes analfabetos como escrivã de cartas endereçadas a parentes e amigos(foto: Aparício Mansur/Divulgação)
Perseguida pela ditadura, Lourdes Barroso se ocultou em um vapor, onde deu voz aos tripulantes analfabetos como escrivã de cartas endereçadas a parentes e amigos (foto: Aparício Mansur/Divulgação)

Hoje reduzidas a pequenos passeios turísticos realizados pelo Vapor Benjamin Guimarães, mantido em Pirapora (MG), as viagens das antigas embarcações entre essa cidade mineira e Juazeiro (BA) são revividas em Diário de bordo – Entre vapores e carrancas, livro da artesã e cantora popular Lourdes Barroso, que durante oito anos – entre 1965 e 1973 – fez, repetidas vezes, o percurso de 1.371 quilômetros em que o manancial é navegável. O relato vem recheado de lendas, folclore, a culinária e ricas histórias dos personagens ribeirinhos. Hoje aposentada, Lourdes fala ainda das carrancas, que ela aprendeu a fazer sobre as águas do Velho Chico. O livro foi organizado pelo fotógrafo e ambientalista Aparício Mansur.

“Muitos dos meus escritos, eu os fiz navegando nos vapores subindo e descendo o rio. Eu anotava tudo. Um dia, resolvi contar minha história. E desse emaranhado de anotações e folhas soltas surgiu o livro”, relata dona Lourdes, de 77 anos, mãe de cinco filhos e nove netos, que mora em Pirapora. A maioria das viagens da autora foi feita no Vapor São Francisco, onde viveu por quase uma década, mas ela recorda de outras “gaiolas” que circulavam entre Pirapora e Juazeiro, levando produtos como cereais, rapadura, sal, farinha e cachaça, além dos próprios passageiros. Nomes de vapores como Antônio do Nascimento, Afonso Arinos, Djalma Dutra, Paracatuzinho e Engenheiro Halfed e Benjamim Guimarães povoam a memória da artesã. “Havia também as lanchas-ônibus, que carregavam muita gente”, recorda.

Vestígios do passado: o Benjamim Guimarães é o único vapor em atividade hoje no Rio São Francisco(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Vestígios do passado: o Benjamim Guimarães é o único vapor em atividade hoje no Rio São Francisco (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Lourdes Barroso lembra do tempo de duração das viagens pelas águas do Velho Chico. “Normalmente, a viagem de Pirapora até Juazeiro ou Petrolina (PE) durava de oito a 12 dias. Mas, quando o rio estava bem seco, o vapor costumava encalhar e a viagem atrasava”, conta a aposentada. A antiga navegante testemunha o processo de degradação do Rio São Francisco e se lembra com saudade que no tempo das “gaiolas”, como são conhecidos os vapores, o manancial era preservado, bem diferente da situação agonizante em que se encontra hoje, poluído e com o seu volume muito reduzido. “Naquela época, o São Francisco tinha muita água e muitas árvores nas suas margens. Era um rio alegre, um rio cheio de esperança, cheio de peixes, com muitos pescadores. Era um rio maravilhoso. Hoje, o São Francisco é um rio vazio, sem árvores por perto. O Velho Chico é triste. Nem os animais a gente vê à sua beira”, lamenta Lourdes.

A artesã aposentada relata também fatos de sua própria vida, envolta pela história do país. Natural de Serrinha (BA), na juventude ela se transferiu para Salvador, onde iniciou a vida como cantora e adotava o nome artístico de Lourdinha Gonçalves. Ela acabou participando de grupos de esquerda. Na ocasião, entre outros ativistas, conviveu com Waldir Pires, que, mais tarde, foi eleito governador da Bahia e exerceu outros cargos públicos.

Com o golpe de 31 de março de 1964, Lourdes passou a ser perseguida pela ditadura militar. Como ela mesmo relata, logo depois do golpe, fugindo para não ser presa, foi levada para Xique-Xique, onde um homem providenciou que embarcasse num vapor. Imaginou que chegaria ao Rio de Janeiro, onde encontraria sua família. Na verdade, estava sendo vítima de uma armação: dentro do mesmo vapor, foi “plantada” uma pessoa com a missão de prender ou dar sumiço na jovem cantora esquerdista.

Mas logo Lourdes conheceu o próprio chefe do vapor, o comandante Barroso, que decidiu ajudá-la. Os dois acabaram se casando e a cantora iniciou oito anos de vida dentro da embarcação, viajando com o companheiro, impedida de desembarcar, para não ser presa. Lourdes aprendeu a esculpir carrancas. Recebeu o aprendizado do mestre Guarani, o artista maior das esculturas do Velho Chico, à época.

Capa do livro Diário de Bordo(foto: Reprodução)
Capa do livro Diário de Bordo (foto: Reprodução)
Mensageira da saudade

Nas longas e demoradas viagens pelas águas do Rio São Francisco, Lourdes Barroso desempenhou outra atividade importante: escrever cartas. A aposentada conta que muitos tripulantes eram analfabetos e, como permaneciam meses longe de casa, recorriam a ela para escrever cartas para as mulheres e namoradas. “Eles pediam que eu escrevesse sobre a saudade que sentiam. Muitos solicitavam para escrever sobre o que compravam durante as viagens para levar para a casa. Era uma vida de sonhos e recordações”, descreve Lourdes Barroso.

A artesã e cantora aposentada ressalta que o seu objetivo ao escrever o livro sobre as viagens dos antigos vapores no Velho Chico e os personagens e histórias do povo ribeirinho foi relatar para novas gerações os fatos de um tempo que não volta. “Foram muitas histórias. Achei que era muito egoísmo guardar tudo aquilo mim. O Rio São Francisco tem muitas histórias que pessoas têm que conhecer”, conclui Lourdes.


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