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Estado de Minas

Crianças têm dupla paternidade nas relações modernas

Mas 'filhos de dois pais' são exceção em país que tem milhares de certidões sem a figura paterna


postado em 12/02/2013 06:00 / atualizado em 12/02/2013 07:17

Enquanto um contingente de cerca de 6 milhões de brasileiros enfrenta o constrangimento de não ter nenhum pai registrado na certidão, as novas configurações familiares começam a produzir casos de crianças com dupla paternidade. É o que ocorre, por exemplo, com padrastos interessados em dar criação e registrar seus enteados, ainda que estes já tenham o nome dos pais biológicos na certidão. Defendido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o conceito vanguardista de paternidade movida por relações de convivência (socioafetivas) tem ganhado força nos tribunais superiores, em alguns casos até mesmo sobrepondo-se à paternidade biológica.


Um exemplo típico do novo conceito que passa a se defendido no Judiciário ocorreu em Rondônia, em março do ano passado. Em ação judicial, uma mulher tentava anular o ato do ex-companheiro, que havia registrado a enteada mesmo sabendo não ser pai biológico. Em vez de aceitar a argumentação da mãe, que afirmava tentar corrigir um “erro do passado”, a Justiça determinou que os dois pais teriam direito a reconhecer a filha. A decisão foi tomada com base no laudo da assistente social do tribunal, que demonstrou que a menina mantinha vínculo afetivo com ambos. Maior interessada na causa, a garota passou a receber dupla pensão alimentícia.

Para o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do IBDFAM, paternidade ou maternidade são funções exercidas socialmente. “Tanto é que muitos pais biológicos abrem mão dessa função. Hoje, é comum a criança nascer e ser criada pelo novo marido da mãe, que exerce a paternidade afetiva do enteado”, explica. Segundo ele, as novas formações de família criam situações inusitadas, como o caso do padrasto que criou o enteado e queria dar a ele de presente uma viagem à Disney. “No entanto, ele precisava da autorização do pai biológico, que estava desaparecido. Foi obrigado a entrar na Justiça e localizar o homem por edital, sendo que o pai de fato era ele”, afirma.

Cunha defende que, na nova versão do direito de família, uma criança pode ter direito a carregar o nome de dois pais na certidão de nascimento. “Antes, a Justiça tirava o nome do pai biológico e substituía pelo do pai afetivo. Agora, deixa os dois. Essas decisões ainda são muito recentes no Brasil, mas configuram uma tendência. Muita gente não reivindica a dupla paternidade, porque ainda não sabe que existe essa possibilidade”, explica. Ele alerta, porém, que o mais importante é não deixar o nome do pai em branco no registro, ainda que o filho seja fruto da chamada “produção independente”. “É uma forma de proteger a formação psíquica dos filhos, mesmo que o pai biológico não exerça a paternidade”, completa.

Há ainda uma terceira via, mais rara. Ela fica clara em um episódio ocorrido em março do ano passado, quando a Justiça de Pernambuco determinou o registro de dois homens como pais de uma criança. Nascida em 29 de janeiro, Maria Tereza é a primeira criança brasileira a ter esse tipo de registro de nascimento. Os pais são os pernambucanos Mailton, de 35 anos, e Wilson, de 40, que vivem há 15 anos uma relação homoafetiva. A criança é filha biológica do empresário Mailton, que recorreu a uma clínica de reprodução assistida e contou com o óvulo de uma doadora anônima para a fertilização. A menina cresceu no ventre de uma prima dele.


Adotados têm que brigar por direitos

Nos casos de adoção, a convivência já tem prevalecido sobre a genética nos tribunais, para definir critérios de registro. O problema começa quando o pai de criação morre e seus parentes biológicos entram na Justiça rejeitando o parentesco com o adotado. Episódio do tipo ocorreu em Belo Horizonte, com as irmãs Vanda e Valdirene Rodrigues. Ambas foram criadas desde pequenas pela tia, irmã da mãe biológica, já que esta não tinha condições de saúde para assumir todos os filhos. As duas foram registradas pelos pais biológicos (Terezinha Rodrigues da Silva e Manoel Moreira da Silva), mas sempre viveram com os pais adotivos (Maria do Carmo Leite e Sebastião Leite).

“Mal conheci a Terezinha, estava com 1 ano e 5 meses quando ela morreu. Chamo de mãe a Maria do Carmo, que foi quem me criou. Antes de ela também falecer, há sete anos, ela chegou a abrir um processo para doar a casa dela e os três barracões de aluguel à minha irmã, que não se casou e não tem para onde ir. Não deu tempo. Agora, uma tia também quer uma parte dos bens e o caso está pendente na Justiça”, revela Vanda, que diz não ter interesse pessoal na causa, por já ter renda própria.

Segundo o advogado José Roberto Moreira Filho, que está à frente da causa, são pouquíssimos os pedidos de reconhecimento de dupla paternidade em Minas. Nos raros casos em tramitação, a situação mais comum é da mulher casada que engravida de outro homem, mas diz ao marido que é ele o pai. “Depois de vários anos de convivência, com a relação já estremecida, durante uma briga a mulher joga na cara do marido que o filho não é dele. Esse homem então entra com ação negatória de paternidade. Em casos desse tipo, a Justiça pode decidir em favor da criança, pois o que está sendo julgado é a preponderância da relação socioafetiva sobre a biológica”, explica José Roberto, coordenador da primeira pós-graduação em direito de família e sucessões da capital, criada este ano na Faculdade Arnaldo Janssen.

Ontem no EM

Na segunda matéria da série Pelo nome do pai, o Estado de Minas mostrou em sua edição de ontem que o Judiciário passou a intervir nos conflitos entre ex-casais que privam o filho do registro paterno. A série, que termina hoje, revelou na primeira reportagem, publicada no domingo, que o país convive com quase 6 milhões de pessoas registradas apenas em nome das mães, e que a cada ano 700 mil bebês engrossam essa lista.



Lei disciplina investigação

 

Desde a Lei 8.560, de 1992, conhecida como Lei de Investigação de Paternidade, a mãe passou a ter direito de indicar o suposto pai da criança, ainda que ele seja casado. Mas ela também tem o direito de se calar civil e juridicamente, pois o gesto é de cunho espontâneo, como prevê a legislação. “A mãe pode apagar esse capítulo da vida dela, em se tratando de crianças geradas por meio de bancos de sêmen, por exemplo. Não há um consenso sobre o que fazer nesses casos. Mas o ideal é que a mãe informe o nome do pai, não só para ter acesso à pensão alimentícia, como para que o filho saiba quem são seus avós, primos e irmãos paternos”, lembra Rodrigo da Cunha, presidente do IBDFAM.

Nos casos em que a família decida guardar segredo até que esse filho atinja a maioridade, a única pessoa capaz de indicar o suposto pai no registro de nascimento é a mãe. “O pai biológico só vai aparecer por indicação da mãe ou, de forma espontânea, por parte dele próprio”, alerta o presidente do IBDFAM. Porém, iniciativas do Judiciário, como o programa Pai Presente, vêm atuando no sentido de pressionar as mulheres a indicar o nome do pai biológico, convencendo-as a preservar os interesses da criança, como vem mostrando o EM na série Pelo nome do pai. Apenas no ano passado foram mais de 4 mil registros bem- sucedidos em Minas.

Se a mãe é casada, subentende-se que o marido é o pai. Um dos documentos mais importantes para indicar o reconhecimento da paternidade é a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitida pelas maternidades no momento do nascimento, com a assinatura da mãe e do pai, caso ele esteja presente na hora do parto. Mentor do Centro de Reconhecimento da Paternidade (CRP), o desembargador Fernando Humberto dos Santos afirma ser capaz de localizar a grande maioria dos pais omitidos nos registros. “Se o jovem procurar o CRP, nós vamos correr atrás da informação, cruzando vestígios dos nomes informados pelas mães em bancos de dados das maternidades, Detran, Receita Federal e fichas criminais”, garante.

PRISÃO Segundo o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Gabriel da Silveira Mattos, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma percepção é de que muitos presos das cadeias brasileiras não informam o nome dos pais ao ser encarcerados. É o caso de Julimar, de 29 anos, pai de Júlia. Ele está detido na unidade prisional Inspetor José Martinho Dumond, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de BH. Na cadeia, pediu à mulher, Érika Tatiana de Sousa, durante os dias de visita, que preparasse os papéis para fazer o termo de reconhecimento da filha, nascida depois que ele foi preso por furto, com a esposa grávida.

Ela levou ao marido o ofício do CRP, que permite o reconhecimento mediante carimbo e assinatura do pai e do diretor do presídio. “Julimar faz questão de registrar a Júlia, porque não quer que ela passe pelo que ele passou. Geralmente ele é ótima pessoa para conviver, muito espontâneo, mas nunca toca neste assunto (a própria paternidade). Ele se fecha”, conta a mulher. Segundo ela, Julimar e o irmão não tiveram registro paterno e já não têm referências familiares, pois perderam a mãe e todos os parentes próximos.


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