O mundo nunca esteve tão pesado: mais de 1 bilhão de pessoas têm obesidade, uma tendência ascendente, inclusive entre crianças e jovens. Ao mesmo tempo, jamais se consumiu tanto medicamento para emagrecer. Somente nos Estados Unidos, a prescrição de análogos de GLP1 — as famosas canetinhas — aumentou 300% em três anos. Procedimentos cirúrgicos também estão em alta: no Brasil, houve 22,9% mais bariátricas em 2022, comparado a 2019, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica.



Tanto os medicamentos quanto as cirurgias são considerados seguros e eficazes para pacientes que já tentaram de tudo, sem conseguir alcançar o peso saudável por muito tempo. Porém, ambas as estratégias precisam de acompanhamento multidisciplinar, pois, segundo pesquisas, o emagrecimento rápido — um dos motivos pelos quais muitas pessoas buscam esses tratamentos — pode levar a um efeito colateral grave: a transferência de vício.

Publicado recentemente na revista Obesity, um estudo da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, encontrou um risco 2,5 vezes maior de adição em substâncias químicas não alcoólicas, como opioides, sedativos, hipnóticos e ansiolíticos, em pacientes submetidos à cirurgia de redução de estômago.

Autor correspondente do estudo e professor do Instituto de Medicina da instituição, Per-Arne Svensson ressalta que muitas pesquisas anteriores associaram o procedimento a um consumo elevado de álcool, mas que é preciso estar atento a outros subterfúgios aos quais pode-se recorrer. "Os profissionais de saúde devem considerar o risco de transtorno por uso de substâncias não alcoólicas no tratamento de pacientes tratados com cirurgia de redução do estômago", diz.

A pesquisa foi feita com 2.010 pacientes com obesidade submetidos a algum tipo de cirurgia bariátrica. Os participantes, atendidos em centros de saúde pública da Suécia, tinham entre 37 e 60 anos e índice de massa corporal (IMC) de pelo menos 34 kg/m2 (homens) 38 kg/m2 (mulheres). O período de acompanhamento foi de quase 24 anos.

Opioides

Comparados a um número semelhante de pacientes-controle, não submetidos a nenhum procedimento de perda de peso, o risco de dependência em substâncias químicas não alcoólicas foi mais que o dobro entre aqueles submetidos ao bypass gástrico, quando o estômago é reduzido por grampeamento, sem retirar parte do órgão.

"Essas descobertas destacam o papel crítico dos médicos de saúde comportamental na avaliação abrangente e no cuidado dos pacientes antes e depois da cirurgia para perda de peso", sustenta Jihad Kudsi, cirurgião bariátrico e presidente da Duly Health and Care, em Illinois, nos Estados Unidos, que não participou do estudo.

Segundo Per-Arne Svensson, não existe uma explicação fisiológica para a associação entre cirurgia bariátrica e abuso de substâncias. "Entre as teorias, inclui-se a da transferência de dependência/substituição comportamental. Também pode ser que a cirurgia de redução do estômago altere o processamento de recompensa cerebral, mas estudos adicionais são necessários para explicar essa associação", destaca.

Mesmo quem não sofria previamente de algum tipo de dependência pode desenvolver vícios, mostrou um pequeno estudo publicado na revista Obesity Surgery por pesquisadores de instituições norte-americanas, incluindo a Escola Médica de Harvard, em Boston. Em uma pesquisa com 97 pessoas submetidas à gastrectomia vertical (ou sleeve gástrico), na qual até 85% do estômago é removido, a prevalência do consumo excessivo de álcool passou de 13,4% para 22,7% após um ano. Segundo os autores, a incidência de pacientes que desenvolveram a dependência depois do procedimento foi de 19%.

"Os novos consumidores de alto risco parecem ter maiores transtornos alimentares no início do estudo e relataram maior melhoria no comportamento alimentar do que aqueles que não desenvolveram novos hábitos de consumo de alto risco", escreveram os autores, no artigo. "Esses resultados são consistentes com a hipótese de transferência de dependência que postula que alguns pacientes podem substituir a alimentação desordenada pelo uso indevido de álcool após gastrectomia vertical."

Bem-estar

A endocrinologista Deborah Beranger, pós-graduada em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, explica que, quando se come, o cérebro libera substâncias químicas associadas ao bem-estar, resposta semelhante à obtida por drogas e álcool. "Isso ajuda a explicar por que algumas pessoas se tornam viciadas em substâncias quando não conseguem mais receber satisfação com sua dieta. Se, por algum motivo, esse paciente não tiver um acompanhamento psicológico, ele pode experimentar a transferência de vício", conta a endocrinologista.

Até agora, as pesquisas indicam que a transferência de vício está mais associada às cirurgias, pois os procedimentos levam a uma redução drástica de alimentos e de peso em um período relativamente curto. Porém, os especialistas alertam que isso também pode acontecer quando o emagrecimento foi natural ou estimulado por medicamentos, especialmente quando não há acompanhamento médico.

"Sempre que as pessoas passam por uma grande mudança em seu corpo, há uma mudança psicológica que corresponde a isso e nem sempre é positiva, como imaginam que será. Quando perdemos muito peso, às vezes isso acontece muito rapidamente e muitas vezes de uma forma que parece fora do controle das pessoas", afirma a médica nutróloga Marcella Garcez, diretora e professora da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).

Marcelo Bechara, clínico geral especialista em obesidade e emagrecimento, explica que a medicina não reconhece, por enquanto, a compulsão alimentar como transtorno, assim como bulimia e anorexia. Contudo, ele diz que essa é uma questão controversa e, assim como Marcella Garcez, acredita que a transferência de vício ocorre devido à dependência alimentar ter mecanismos cerebrais semelhantes aos de outras. Não necessariamente o paciente se voltará a uma substância. "Pode se viciar em jogo, em compras e até em esportes", observa.

Três perguntas para Marcelo Bechara, clínico-geral especialista em obesidade e emagrecimento

Algum perfil de paciente em especial corre maior risco de substituir a compulsão alimentar por outros tipos de adição?
Essa substituição de compulsão alimentar por outros tipos de adição é o que a gente chama de transferência de vício. O paciente que tinha o vício em comer — o comer emocional — acaba mudando para outro tipo, quando ele tem uma perda de peso muito rápida. Pode ser álcool, drogas, compulsão por compras, jogos, esporte… Esses pacientes já demonstravam alguma questão em relação à adição.

Então o emagrecimento muito rápido é um fator de risco?
O emagrecimento rápido pode levar a esse tipo de comportamento. É muito comum nos pacientes que fazem cirurgia bariátrica, diferentemente daqueles outros que fizeram reeducação alimentar, que passaram por terapia, por nutricionista, e emagreceram devagar, de maneira sustentada. Então, realmente a velocidade de emagrecimento pode levar à troca de vício.

O senhor acredita que os medicamentos análogos do glp1 deveriam ser vendidos com necessidade de receita médica?
Acredito que sim. É uma medicação segura, com poucos efeitos colaterais graves. Mas pode dar algum problema? Pode. Por exemplo, alteração de enzimas do pâncreas, levando à pancreatite. Fora os efeitos mais comuns, como náusea e vômito. O paciente compra a medicação sem orientação, pega informação na internet ou com algum amigo e não tem estratégia nenhuma de emagrecimento. Quando parar de tomar, vai acabar engordando.

Inibidores potentes

Se, por um lado, o rápido emagrecimento por cirurgia ou medicamentos pode desencadear a troca de dependência, em pessoas com compulsão, por outro, estudos sugerem que os inibidores de GLP-1 têm potencial para tratar o abuso de álcool. O mais recente, do Instituto de Pesquisa Biomédica Fralin, do Virginia Tech, nos Estados Unidos, investigou postagens na rede comunitária Reddit, nas quais usuários de semaglutida e tirzepatida sentem menos desejo de beber. Em modelos animais, as substâncias reduziram a busca por álcool. Os cientistas afirmam, porém, que mais estudos são necessários antes de expandir a indicação dos emagrecedores para tratamento de dependência química.

 

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