Jorio Dauster: ‘Chegou a hora de dar um basta nessa negociação com a União Europeia’
Embaixador do Brasil nos anos 1990 defende que o Brasil deve deixar de lado as negociações com os países europeus e voltar a atenção para países da Ásia, que crescem mais que a média mundial e precisam de alimentos
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Embaixador do Brasil junto à União Europeia entre 1991 e 1999, Jorio Dauster, 88 anos, entende que o bloco europeu perdeu relevância e que é hora de o Mercosul dar um basta na negociação do acordo comercial que, diz, se arrasta há 30 anos. O governo Luiz Inácio Lula da Silva queria que a assinatura ocorresse durante a cúpula do bloco, marcada para este sábado, 20, em Foz do Iguaçu (PR). Só que pressões de alguns países europeus adiaram a votação no Parlamento. Em entrevista exclusiva ao PlatôBR, Dauster disse que países com maior produção agrícola, como França, Bélgica, Holanda e Itália, têm feito exigências inaceitáveis.
“O Mercosul já fez concessões imensas. Após o fim das negociações, o Parlamento Europeu fez recomendações adicionais com condições drásticas e tornou o acordo inaceitável para o Mercosul. Daí a minha tese, compartilhada por diplomatas de Paraguai e Uruguai, de que chegou a hora de dar um basta nessa negociação com a União Europeia. O acordo perdeu relevância. A proposta é mais importante para a Europa, para países como a Alemanha, que querem exportar produtos industriais para o Mercosul”, afirma Dauster, que foi presidente da Vale de 1999 a 2001.
Na avaliação do diplomata aposentado, o Brasil deve dirigir a atenção para países da Ásia, como Índia e China, que crescem mais que a média mundial e têm uma demanda crescente por alimentos. Além disso, ele afirma que o tarifaço imposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mostrou que o país pode mudar a rota das exportações e abrir novos mercados para os produtos brasileiros. “O Brasil tem que olhar para o resto do mundo, e o tarifaço resultou em algo interessante. A guerra tarifária mostrou que temos uma capacidade de expansão de mercados maior do que se imaginava. Nesses seis meses em que o Brasil ficou assustado com o tarifaço, nós descobrimos que tem comprador no mundo. É só trabalhar, bater na porta e buscar o mundo.”
Eis os trechos principais da entrevista.
O que representa para o Brasil e para o Mercosul o adiamento no acordo com a União Europeia?
Há 30 anos esse acordo é negociado. Todo mundo diz que a negociação começou em 26 anos, mas eu estava em Madri, em 1995, quando a ideia do acordo surgiu. A União Europeia era um bloco importante e nesses 30 anos sofreu o que chamo de euroesclerose, que é um processo de decadência da região toda, que a levou à irrelevância. Países europeus que têm maior produção agrícola, como França, Bélgica, Holanda e Itália, não querem o acordo. O Mercosul já fez concessões imensas. Após o fim das negociações, o Parlamento Europeu fez recomendações adicionais com condições drásticas e tornou o acordo inaceitável para o Mercosul. Daí a minha tese, compartilhada por diplomatas de Paraguai e Uruguai, de que chegou a hora de dar um basta nessa negociação com a União Europeia. O acordo perdeu relevância. A proposta é mais importante para a Europa, para países como a Alemanha, que querem exportar produtos industriais para o Mercosul. O próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, trata a União Europeia como lixo. Não estou defendendo ele, mas é um fato.
Caso o acordo não seja aprovado, qual deve ser a postura do Mercosul e do Brasil?
O Brasil tem que dirigir sua atenção para a Ásia, para países com Índia e China. Se a Europa não tem condições de negociar, vamos virar essa página. O Brasil tem que olhar para o resto do mundo, e o tarifaço resultou em algo interessante. A guerra tarifária mostrou que temos uma capacidade de expansão de mercados maior do que se imaginava. Nesses seis meses que o Brasil ficou assustado com o tarifaço, nós descobrimos que tem comprador no mundo. É só trabalhar, bater na porta e buscar o mundo.
Além da Ásia, o Brasil deve buscar acordos com que países?
Temos os países do Pacífico, o México e temos que intensificar o comércio na América do Sul. Temos visto um movimento impulsionado pela Argentina, que tem se fechado dentro dessa aliança política do presidente Javier Milei com o Trump. Isso é ruim. As economias que estão crescendo de forma extraordinária estão na Ásia. China, Índia, Filipinas, Indonésia, Malásia e Cingapura são destinos potenciais das exportações brasileiras e crescem até 7% ao ano. Agora, o Brasil sabe que precisa reforçar a sua indústria. Estamos voltando a ser um fazendão.
O Brasil erra nessa estratégia?
Quando eu entrei na vida diplomática, o país vendia café, cacau e açúcar. Estamos chegando de volta a essa situação. Estamos virando exportadores apenas de commodities. Temos que aproveitar esses mercados, que são países pobres, eram miseráveis e fizeram uma revolução. Com o crescimento econômico nesses lugares, a demanda por alimentos explode. Por isso vendemos carnes e derivados de soja. Existe um mercado extraordinário de bilhões de dólares a cada aumento de renda nesses países. A Índia tem 1,4 bilhão de habitantes. Qualquer crescimento por lá é um estouro em matéria de demanda. Temos que ir para onde o mundo esta crescendo. A Ásia inteira está em um forte movimento de ascensão.
Mas o México impôs um tarifaço ao Brasil.
A indústria automotiva é sensível para o México. Aí ele aumenta tarifas, como nós temos tarifas altas para defender setores industriais que são vitais para o Brasil. Isso é do jogo. Não significa o fim de negociações para um tratado, que lá na frente resultaria na criação de um regime de cotas. Isso é do dia a dia da politica e da diplomacia econômica e não assusta ninguém. A relação do Brasil com o México é de entendimento e cooperação. Não é uma coisa agressiva como o Trump, que passou a usar o comércio exterior de forma mafiosa, com tarifas sendo usadas como arma. Tarifas defensivas temos que entender e também as aplicamos.
O senhor foi um dos negociadores da dívida externa na década de 1990 e hoje a dívida pública volta a ser fonte de preocupação. Como o senhor avalia a situação?
São coisas diferentes. Participei do começo da negociação da dívida externa, e depois o Pedro Malan assumiu essa tarefa. Depois dessa negociação exitosa, o Brasil nunca mais voltou à mesa para tratar de dívida externa, e não de esmola, como a Argentina pede ao Trump. Sem o socorro dos Estados Unidos, a Argentina estaria quebrada. Por sorte, na primeira passagem do Lula pelo governo houve um boom de commodities e o governo fez um colchão de US$ 300 bilhões, que é um seguro para o Brasil.
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E no caso da dívida pública interna, que tem crescido anualmente?
Internamente, há uma indisciplina fiscal no Brasil, e isso é grave. Tivemos nos últimos tempos algo, que começou no governo Bolsonaro, que foi o Congresso tomando conta do Orçamento, que tem 90% das despesas engessadas, fixadas em lei e emendas bilionárias. E o governo precisa desses recursos para sobreviver na relação com o Congresso porque não tem mais poder sobre a condução da política. O Brasil perdeu a capacidade de investimento público. E um presidente como o Lula, que tem pela natureza do PT e do seu passado histórico esse desejo de poder servir maiormente as classes menos favorecidas, tem que abrir os cofres. O governo aumenta despesas e esbarra nessa incapacidade efetiva de usar o orçamento de forma equilibrada. A maior fonte de preocupação não é o nível atual, mas a tendência de crescimento da dívida pública. Se tem tendência de aumento, esse problema começa a se tornar incontrolável. Mantido esse nível crescente de endividamento, teremos um desestímulo ao investimento. O setor privado fica com o pé atrás. A situação interna do Brasil não é a melhor.