Em meio ao turbilhão vivido na política brasileira com direito a tarifaço dos Estados Unidos, motim de parlamentares nas mesas diretoras do Congresso Nacional e o decreto de prisão domiciliar de um ex-presidente, o vídeo de um youtuber suspendeu a pauta e mobilizou um debate sobre o combate à pedofilia e a regulamentação das redes sociais no país.
Em entrevista ao Estado de Minas, Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), discute o atual estágio do debate sobre o impacto das redes sociais no Brasil à luz da repercussão do vídeo do paranaense Felca expondo casos de adultização e erotização de menores de idade e como as grandes plataformas não restringem conteúdos que se tornam alvos de perfis ligados ao consumo e divulgação de pornografia infantil.
Em uma semana, o vídeo de Felca bateu marcas importantes dentro e fora da internet. Com quase 40 milhões de visualizações no YouTube, a publicação já provocou a criação de mais de 30 projetos de lei no Congresso Nacional e centenas em assembleias legislativas e câmaras municipais pelo Brasil. A pauta une partidos como PT, PSOL e PSB ao PL, União Brasil e o PP.
Steibel analisa o cenário e explica como a “bala de prata” para a resolução do problema passa por encontrar uma convergência entre a regulação das redes defendidas à esquerda e a punição aos pedófilos decantada à direita.
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ENTREVISTA
Quais as dificuldades em atingir os direitos digitais das crianças e adolescentes em um contexto de uso constante das redes sociais?
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já trazia grandes provisões para a proteção de crianças e adolescentes. O problema é que os produtos digitais foram inicialmente desenvolvidos para adultos, e só agora se pensa mais nas crianças. Isso gera dificuldade em atingir os direitos digitais delas, pois os produtos internacionais e nacionais não eram, inicialmente, pensados para esse público. Gradativamente, houve uma preocupação com a criação de produtos próprios para crianças e adolescentes, como o YouTube Kids. Vários problemas surgem nas plataformas digitais, como magreza, bulimia, pedofilia, abuso de menores e recrutamento para trabalho infantil.
E como você avalia a forma como a questão está sendo debatida no cenário político atual?
Esquerda e direita concordam que é um problema. O que elas discordam sobre qual o remédio para isso. Para a esquerda, geralmente o controle é você usar o Estado para controlar até onde as empresas podem ir, para que elas obedeçam à lei. Um lado vai dizer que isso é demais, o outro vai dizer que isso é de menos, mas a ideia é usar as ferramentas do Estado para controlar as empresas. Do lado da direita, você vai ter outra perspectiva que é deixar que o mercado resolva. Que se aumente a concorrência. Nenhum desses remédios é perfeito e nenhum funcionou.
Ao colocar o governo para moderar conteúdo, eventualmente ele vai começar a escolher o que é conteúdo ruim ou não. Isso acontece com propaganda eleitoral, com direito de resposta. Isso já aconteceu várias vezes. Esse é um dos defeitos do modelo. Por outro lado, se você deixar todo mundo livre e com a regulação pela concorrência, o que pode acontecer é que essas grandes plataformas se unam e não regulem nenhum tipo de conteúdo, porque assim é melhor para elas. E aí você não tem negociação com eles. Você pode dizer para mudarem, mas se todo mundo operar igual, também não funciona isso. E você tem um problema real que vem crescendo, que tem cada vez mais dados e cada vez mais detalhes.
Tanto a esquerda quanto a direita têm alguns argumentos certos e alguns argumentos errados. O melhor seria a gente ter uma argumentação sincera sobre o que funciona para criança, ou seja, não é sobre esquerda e direita, mas para a criança. Mas o Legislativo associa a discussão de um tema com quem propõe e todo mundo quer ser o pai ou a mãe da solução. Neste embate, faz 10 anos que a gente não consegue passar uma legislação decente para pensar em crianças e adolescentes.
O quanto essa discussão se encaixa no debate atual de regulação das próprias mídias ou de responsabilização das redes sociais em relação aos conteúdos que elas distribuem?
O Brasil escolheu fazer o Marco Civil da internet. Ele vai ter uma previsão dizendo que o conteúdo na rede é responsabilizável. Mas aquele que transmite não é responsabilizado diretamente por aquilo que é postado por outro. Para que que isso foi feito? Isso foi feito com a ideia de liberdade de expressão. Porque senão você vai pegar os valores da plataforma, e ela que vai dizer o que pode e o que não pode. À época, havia evidências de que isso seria danoso.
Essa responsabilidade dos intermediários é subjetiva. Se for na publicidade que ele vende, se for em alguma coisa que a empresa faz, ela é responsável. Mas se for você que põe um produto, você responde. E a gente colocou o Judiciário como mentor desse processo. Eu acredito que essa seja a melhor solução, o que não significa que seja boa. Mas é melhor que deixar o Executivo, que pode estar envolvido nisso, o Legislativo, a própria empresa, ou o dinheiro determinar as regras. É uma solução importante.
O que a gente está discutindo agora é o seguinte: será que tudo tem que ir para o Judiciário? Será que não tem coisas que, pela escala e pela facilidade de ação, não deveriam ser resolvidas antes do Judiciário? A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema determina que a responsabilidade é de quem posta, mas em casos de conteúdos específicos, quem transmite tem um pouco mais de responsabilidade.
O projeto de lei (PL) das fake news dizia a mesma coisa.Ele mantinha a liberdade de expressão, mas determinava que alguns tipos de conteúdo precisariam de uma moderação diferente e aí atribuía uma responsabilidade objetiva para as empresas. Obviamente, estamos falando de um setor que não quer ser responsabilizado porque isso reduz a quantidade do que eles podem fazer e, por isso, eles vão ser contra. Então, o lobby é racionalmente explicável.
A solução está no meio do caminho, mas é difícil. Depois da decisão do Supremo, canais de comunistas e monarquistas foram retirados do ar. Será que fizeram discurso de ódio? Não dá para saber. Mas se a plataforma achou que sim, está fora. Ao pedir que as plataformas retirem mais conteúdo, há sobre-remoção de conteúdo. É melhor que deixar para o judiciário? Pode ser. Mas o ideal seria resolver problemas específicos, não com uma regra geral.
Nesse caso da proteção às crianças seria possível pensar em uma regulação específica?
Sim e não. A Inglaterra, por exemplo, colocou lei dizendo que há obrigação de saber a idade das pessoas. Isso tem problemas: tirar fotos, identificar crianças, evasão de profissão, algoritmos para identificar adultos ou não, contas que pais passam para crianças. Há vários buracos nesse processo.
Há quem diga que não é a plataforma que tem que tirar alguém, mas o aparelho. Se o computador for para criança, só recebe conteúdo infantil. As plataformas diriam que a culpa é de quem faz o aparelho (Apple e Android), e vice-versa. Não existe bala de prata. A decisão do Estado deveria endereçar problemas específicos e mitigar o que pode dar errado, pois qualquer decisão criará problemas.
Como você avalia as dificuldades do Brasil em avançar no debate sobre uma utilização racional e legal da comunicação digital?
O PL das Fake News, por exemplo, começou no Senado. Nós fomos consultados sobre o texto e a primeira coisa que eu disse foi que estava longo demais. Viraria uma árvore de Natal. O projeto original foi tirado, um substituto mudou muita coisa. Houve discussão durante um ano. O PL não era sobre fake news, mas ganhou essa pecha. Tinha mecanismos para lidar com a utilização que está sendo colocada agora, mas o problema é que o Congresso precisa funcionar com consenso.
É errado dizer que foram as big techs que afundaram o PL, mas sim elas estavam contra. Mas os grandes grupos de comunicação queriam uma coisa, a Secretaria de Comunicação outra, o Ministério da Justiça outra, as escolas outra. Ficaram muitos stakeholders. A estratégia do relator foi boa: pegar um pedaço que cada um queria e colocar dentro. Foi assim que entrou o direito de remuneração do jornalismo, por exemplo. O problema é que pode incluir algo que algum stakeholder se recusa a combinar. Na busca de apoio, há risco de fragmentação. A liderança ficou frágil. A direita se uniu na ideia de que qualquer regulação de liberdade de expressão é pior que nenhuma regulação, e não houve votos suficientes. Tornou-se proibido falar do PL das Fake News, e ele foi para a gaveta.
Agora essa discussão vai voltar. Há dezenas de PLs acontecendo. O presidente Lula disse que vai colocar algo no ar. É importante essa discussão. Espero que achemos algo consensual. Mas se quisermos resolver todos os problemas da internet nessa lei, há grande chance de acontecer o que aconteceu com o PL das Fake News antes: ir para o lixo.
Existe algum caminho para essa discussão que não inclua a possibilidade de que as plataformas ajudem a restringir a veiculação de conteúdos criminosos?
A melhor solução distribui responsabilidades. Há responsabilidade da plataforma: elas precisam investir mais em moderação de conteúdo e propaganda, monitorar melhor a viralização de conteúdos. Haverá margem de erro, mas pequena. Isso é que se espera das plataformas.
O governo tem que colocar de pé um sistema de identidade digital que permita identificar uma criança. Senão, duplicaremos o Gov.br dentro das plataformas e isso é uma péssima solução. O Ministério da Gestão e Inovação tem essa tarefa. Ser fácil e objetivo dizer quem é criança na internet é o que precisamos.
Os influenciadores que criam um modelo de negócio fazendo esse tipo de conteúdo, que beira o ilícito ou é ilícito, também têm que ser responsabilizados. Os políticos também entram nessa conta porque certos debates políticos podem incorrer em crimes e aí tudo fica ainda mais complicado.
Então perceba que não são só as plataformas, é todo um ecossistema. Uma regulação tem que lidar com todos esses aspectos. Além disso, a polícia tem que estar melhor equipada, as penas ajustadas, os mecanismos de investigação adequados. Há dificuldade, pois é um problema super complexo com muitas responsabilidades, e não conseguimos chegar a um consenso que funcione.
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A regulação não resolve tudo, mas quando a regulação não avança, o mercado dita as regras. E o mercado disse que a atenção a esses conteúdos é boa para os negócios. Criamos uma economia ao redor disso. O Estado tem que combater essa economia. Tem gente ganhando dinheiro com isso.
Minha estratégia seria o "follow the money" (siga o dinheiro): quem está lucrando com isso? O tio que fala piada preconceituosa sempre existiu, mas ele é diferente de um canal de comunicação, político ou plataforma que lucra milhões fazendo isso. É sistematizado. Por isso, "follow the money" é a melhor solução, pois pega no problema profissional. Tira o problema amador. Foca em quem lucra profissionalmente. Se tirar quem investe dinheiro para criar, distribuir conteúdo etc., diminui a quantidade.
