ANITA RIVERA GUERRA 

ESPECIAL PARA O EM

Tem gente que, apesar de ter sentido na pele e gravado na memória o pior que o mundo tem a oferecer, segue a vida com a leveza de uma criança que trepa nas árvores mais altas sem medo de cair. É o caso de Cristina Peri Rossi, que, com recém-completados 84 anos e uma série de problemas de saúde, continua sendo a menina cheia de coragem e curiosidade que ela retrata em seu último romance, “A insubmissa” (2020), como Leonor Courtoisie afirma no trecho que compõe a orelha da edição brasileira, lançada pela Bazar do Tempo em maio desse ano: “Cristina Peri Rossi é uma menina que escreve como adulta, tentando explicar a uma menina (...) a razão incompreensível que a fez continuar sendo uma menina, agora com oitenta anos.” 

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A frase não poderia descrever melhor essa autora cuja obra, tardia e inadiavelmente, chega ao Brasil com a atenção merecida. Quem a lê através das lentes da inocência ou mesmo da debilidade, porém, não poderia estar mais enganado: do seu primeiro romance, “El libro de mis primos”, de 1969, ao mais recente, a infância aparece na obra de Peri Rossi como sinônimo de resistência frente às injustiças do mundo. Em “A insubmissa”, cada página revela a valentia de uma pequena Cristina que encara de cabeça erguida os traumas passados, presentes e futuros que vão da agressividade do pai alcoólatra à ruptura geográfica e ontológica do exílio, passando por episódios de violência sexual, decepções amorosas e humilhações por parte do tio que ela mais admirava, mas que era “misógino, neurótico e frustrado”. Entremeando todo esse sofrimento, no entanto, há um desejo de descobrir o mundo que só as crianças — e, quiçá, alguns escritores — mantêm. É o que faz com que os leitores de Peri Rossi, tanto de sua prosa quanto da poesia, se lancem em sua escrita como se também não tivessem medo de ir ao chão, agarrando-se a cada frase, a cada verso, como a um novo galho alguns centímetros acima do anterior. 

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Foi agarrando-se à escrita, também, que Peri Rossi sobreviveu aos longos anos do exílio que em 1972 a tirou de sua cidade natal, Montevidéu, e a levou para Barcelona, onde vive até hoje. No prólogo de “Estado de exílio”(2003), escrito entre 1973 e 1975, mas publicado apenas 30 anos depois, a autora conta que escolheu o ineditismo porque “não queria contribuir com a dor coletiva, o desenraizamento solitário”. Ao contrário, segundo ela, no livro “Diáspora” (1976), o primeiro escrito e publicado durante o exílio, é pelo amor — e pelo humor — que se resiste; “de todas as catástrofes, incluindo a do exílio, nos salva a libido”. Em cada um dos mais de 50 volumes publicados desde 1963, entre contos, romances, poemas e ensaios, nos deparamos com os prazeres e as angústias que o desejo — e a linguagem — despertam, em suas múltiplas formas; afinal, “nunca/em nenhum lugar/um desejo foi igual a outro”, diz o poema “Desejo”, do livro “Aquela noite”(1996). É sobre exílio e desejo que trata também um de seus livros mais reconhecidos, “La nave de los locos”(1984) — “meu melhor romance, segundo a crítica”, afirma a autora. Nele, o protagonista Xis (Equis, no original) navega de cidade em cidade como uma alegoria dos desterrados da história e da literatura mundiais, sem direito a um nome, a um passado ou a um futuro. 

Não por acaso, Peri Rossi coleciona figuras de barcos e outros objetos de navegação que se espalham pelas estantes lotadas de livros e prêmios do apartamento onde mora, em um bairro residencial da capital catalã. Do andar alto, quando a poluição permite, vê-se o Mediterrâneo, onde o navio que a trouxe do Uruguai há pouco mais de meio século aportou. Quando eu a visitei, em abril desse ano, nos sentamos lado a lado, em frente à janela. Seus olhos de menina, ágeis e interessados, escrutinavam minhas feições com o que me pareceu ternura e um tanto de curiosidade. Ela me confidenciou: “às vezes me sinto solitária aqui em cima, de manhã cedo, quando a cidade está dormindo”. Mas sabemos — Cristina, seja como autora ou como personagem, não tem medo de cair.

ANITA RIVERA GUERRA é pesquisadora e tradutora. Atualmente, finaliza o doutorado no Departamento de Línguas e Literaturas Românicas da Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts, onde também realizou o mestrado. Pesquisa a obra de Cristina Peri Rossi desde 2016. É mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com graduação em Jornalismo na mesma instituição.

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